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31 de ago. de 2006

O "GRANDE ALMA"

Uma velha e empoeirada enciclopédia geográfica guardada na estante de madeira do escritório de casa assaltou-me de curiosidade. Há anos a via ali, plácida, sempre no mesmo lugar sem nunca ter alguém a folheá-la.

Certo dia resolvi enfrentar o pó e o forte cheiro da naftalina usada para espantar as indesejadas baratas que costumavam passear pelo cômodo. Desbravei aquelas páginas ainda coladas do prelo e entre dados, informações históricas e fotos, uma imagem em preto e branco, um pouco desgastada pela idade, me chamou a atenção. Era uma fotografia de Mahatma Gandhi deixando um veículo estacionado à frente do Palácio Sait James na chuvosa e fria Inglaterra, onde seria realizada uma conferência para discutir questões relativas à independência da Índia, em 1931. Vestia singelos trajes indianos em contraste com os solenes e indefectíveis sobretudos de alguns transeuntes que o observavam sob o soturno clima das ilhas britânicas.

Gandhi foi educado na Inglaterra para ser um advogado promissor, mas abandonou as expectativas de um futuro cintilante no centro do mundo e preferiu olhar para a tragédia de seus conterrâneos. Despiu-se de tudo aquilo que representava a escravidão do seu povo, voltou para seu país. Lá ele se viu no espelho. Lá estava sua vida, sua história. Ele sabia que a Índia só se livraria do jugo colonial caso se despojasse por completo de todos os ranços que a ligava ao passado da dominação estrangeira.

Nunca mais me esqueci daquela figura delgada de aparência tísica mas que no seu espírito se mostrava um colosso imbatível. Aquela imagem jamais me abandonou. O significado da sua luta pela libertação vai muito além dos parcos limites da nossa compreensão cotidiana, insípida e superficial. Gandhi buscou nas suas próprias raízes uma justificativa capaz de assegurar um futuro possível àqueles que não possuíam sequer a expectativa de sonhar.

CAETANO PROCOPIO

22 de ago. de 2006

O MENDIGO

Não há muita novidade em estar vivo.
Pelo menos é assim para muitos
E, Ele caminha pela vida.
Quando a invasão de carros suja a cidade.

E o chamado "cidadão de bem"
Aciona sua ira no grito demente da buzina
Na pressa incansável dos dias.
Dois cachorros o acompanham no seu caminho contínuo

Na sombra de uma ampla árvore, descansa uma lixeira
E é lá que fica o descartável!
No amontoado de dejetos, ele para e procura.
E a busca segue viagem ao desconhecido.

Ele rumina o lixo e ameniza a podridão
E os ecológicos deveriam preservá-lo.
E, no plexo solar do mundo todo azul
O cheiro fede, arde e queima.

Os cachorros ladram para a caravana dos automóveis
Levados pelo instinto.
As calçadas pisadas por pés cegos proliferam frases rudes,
Contra o dia que segue calado... as horas vitais e nem sempre necessárias.

Num gole d’água, sedento, o soluço desperta a desgraça,
De viver por estar vivo, sem culpa e sem vontade.
As moedas ganhas são respingos da sujeira diária
Dos setecentos gramas de lixo que produzimos diariamente.

Bitucas de cigarros amenizam qualquer coisa.
Na cor opaca do papelão ele sonha algo colorido?
Na garrafa ardente ele quer comemorar
Como os gentis comemoram no final da tarde.

Na essência da humanidade, ele puxa a carroça
Anda na contra mão, de pés descalços, como muitos naturalistas cult
E uma parte dele é chamada de loucura.
Talvez seja o lado que a solidão matou.

E o cristão diz: a culpa não é minha.
Cimenta espaços sob os viadutos
Na esperança (todo cristão se alimenta dela)
Dele desaparecer com o vento.

Mas, o vento é sábio e não tem lado.
Sopra na cara, e foge.
Arrepia os pelos dos cachorros, enche os olhos do cristão de terra
E empurra a carroça nas subidas do desgraçado filho do lixo.

Cuja liberdade é plena.
Sem códigos de identificação
Sem marca passos no coração
Na vida que as vezes é pequena demais.

VANDERSON PIRES

UMA PROPOSTA IRRECUSÁVEL


“Vou lhe fazer uma proposta irrecusável”. Esta era a frase que normalmente decidia uma discussão de negócios de Vito Corleone. O resultado, quase sempre, um banho de sangue. Difícil crer que a mesma pessoa que afagava o pequeno Michael com tamanha candura fosse um temível assassino.

O “Don” possuía suas regras. Os “negócios” jamais poderiam adentrar pela porta da frente da casa. E como um bom patriarca, sua preocupação sempre foi a de viver em função da família. Ela deveria estar protegida a todo custo. Mas nem tudo saiu conforme o planejado pelo velho Corleone. Santino, o seu primogênito, acabou assassinado por mafiosos rivais numa emboscada. Quando se recusa uma proposta, dificilmente há outro desfecho.

A morte do filho rompeu com uma tradição siciliana na sucessão do poder e o cetro acabou sendo entregue ao caçula após a aposentadoria do “padrinho”. O sucessor, Michael Corleone, era um homem onipotente que não só apreendeu as lições deixadas pelo pai como conseguiu expandir os “empreendimentos familiares” muito além dos limites suburbanos de Nova Iorque. Impôs uma forma de negociar ainda mais implacável. Extremamente frio, calculista, jamais hesitou exterminar aqueles que ousaram atravessar seu caminho, inclusive o irmão Fredo, que lhe causou sérios aborrecimentos quando, ingenuamente, tentou interferir nos “assuntos da família”. Não possuía limites para a barbárie. No fundo, um ser solitário, completamente árido de sentimentos e embrutecido pela lógica perversa do crime organizado. Seu caráter cruel só começa a se desfazer no terceiro episódio da saga quando, atormentado pela culpa de seus assassinatos, mostra-se um homem frágil e angustiado.

Viveu obstinadamente o sonho paterno de livrar a família da ignomínia de mafiosa. E quase conseguiu redimi-la do passado criminoso. O golpe decisivo para legalizar as “empresas Corlone” se deu através de uma proposta milionária de associação com a poderosa companhia imobiliária do Vaticano. Mas novamente se deparou com os conhecidos “métodos” praticados no “submundo” e acabou impedido pelos “conselheiros” papais de concretizar a negociação. A realidade dos negócios é mais abjeta do que ele poderia supor. Nem mesmo a Santa Sé estaria imune.

Após décadas, “O Poderoso Chefão” não alcançou o desejo de seu pai manter a família protegida dos “negócios”. Ao contrário, suas escolhas acabaram impondo perdas absolutas: irmãos, mulheres, filha, enfim, a própria família. Terminou seus dias recolhido no mais profundo isolamento, não lhe restando algo além da morte solitária onde tudo começou, no interior da Sicília.

CAETANO PROCOPIO