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22 de nov. de 2008

LÍRIOS DOURADOS

Aos quinze anos, a menina de cabelos negros, bem lisos, tornou-se mais uma das cinqüenta garotas que serviam a um velho homem. A história desta garota é igual a de milhares de outras mulheres, só que a sua alma era diferente. Ela não tinha uma personalidade muito forte, mas seus sonhos eram tão intensos que a faziam ter destaque, mesmo cercada por outras tantas raparigas.
Seu mundo era outro. Nele não havia bonecas nem brinquedos de menina. Mas sua imaginação era forte, lúcida e livre.
Como de costume daquele lugar, o velho bode foi seu primeiro homem. Ele a usou e se renovou com a sua juventude e beleza. A menina entendia o que estava acontecendo e não impôs obstáculos, nem mesmo na primeira noite. Ela procurou sentir prazer, talvez um prazer maior que o do velho. Sua imaginação permitia levá-la a um outro universo.
Ela sabia que em sua vida não poderia haver nenhum tipo de necessidade. Nenhuma necessidade! Para ela não existiam modelos e nem ela serviria de modelo a ninguém. Sua vida se resumia a uma escravidão sexual e terrena, mas não espiritual. Sua alma era leve e serena.
Todos os dias, logo pela manhã, ela lavava roupas na margem do rio com outras tantas mulheres. Os cânticos eram entoados em coro. Às vezes, ela parava e observava as outras. Via naqueles olhares sonhos, esperanças, desilusões... Existia uma resignação coletiva. Isso a fazia pensar em como seria a sua vida dali alguns anos.
Uma destas mulheres, de rosto marcado e castigado pelo sol, era a mais velha de todas. Aparentava ter vivido uns 65 anos, mas na verdade foram apenas 45. Seu nome era Laura. Sem muitas explicações, Laura e a menina passaram a ser grandes amigas.
Laura era uma das primeiras mulheres aliciadas pelo bode velho. Sábia e muito viva, aprendeu a ler e escrever. Quando questionada pela menina sobre como suportava tanto tempo vivendo naquelas condições, uma breve pausa se fez: "A leitura e a escrita libertaram minha alma." A menina, sem entender muito bem o que aquilo significava, foi capaz de captar o sentimento da velha mulher e chorou... Juntas, elas se abraçaram.
Laura começou a ensinar a menina a ler e escrever. Agora, as noites de prazer do velho, eram intercaladas com saraus e muitas histórias de diversos livros. Laura, pela primeira vez na vida, estava feliz. Contava com imensa alegria tudo que sua alma guardava por todos estes anos.
Dentre estas várias histórias, uma teve mais repercussão. Contou Laura que, em um país muito distante dali, existiam mulheres como elas. Estas mulheres eram chamadas de concubinas. Eram as filhas da China. Só que, ao contrário da realidade das meninas, lá os homens mais novos se casavam com mulheres mais velhas. Era tradição daquele lugar, mulheres ajudarem a criar seus maridos. Todas ficaram inquietas com este detalhe da história. Pareciam entender o papel da mulher neste mundo dominado pela força.
Diante destes detalhes, as várias mulheres estavam atônitas ouvindo com muita atenção as palavras da sábia. Laura continuou a contar a história. Dizia ela que neste país, as mulheres, a partir dos dois anos de idade, tinham seus pés enrolados por faixas, para que não crescessem mais que oito centímetros. Os "Lírios dourados de oito centímetros". Os homens da China admiravam isso, pois a visão de uma mulher oscilando por ter os pés pequenos demais, tinha um efeito erótico. A vulnerabilidade das mulheres provocava um sentimento de proteção nos homens. Todos os ossos dos pés eram quebrados e a maior parte das mulheres submetidas à prática desmaiavam de tanta dor.
Nesta hora, todas começaram a falar sobre este detalhe que para elas se mostrava tão cruel. Parecia que, neste momento, elas se sentiam mais leves... Mesmo sendo expostas à escravidão sexual, o fato de não serem submetidas a este tipo de prática trouxe um alívio momentâneo. Imaginar os pés esmagados para agradar os homens parecia uma coisa sem nenhum sentido prático.
Laura, em um discurso inflamando, começou a falar: "Estes senhores do mundo são apenas meros animais de nossa fauna. Eles não sabem dançar à noite sob o luar, não sabem amar a própria carne de seus corpos, não sabem demonstrar nenhum sentimento, só querem o poder, só querem mandar e ser servidos. Mulheres, tenham piedade de nossos vencedores, porque eles são fracos em espírito e ingênuos de coração".
Este momento foi o mais mágico para a menina de cabelos longos. Ela fechou os olhos e imaginou que seu mundo poderia ser outro. Em seus pensamentos, um lindo corcel negro vinha correndo em sua direção. Ele trouxe em sua boca um enorme lírio dourado. E sem saber como era exatamente essa flor, de alguma forma ela pode sentir o perfume. Era como respirar o mais puro ar das alturas. Ela sentiu o momento mais livre de sua vida.
Em silêncio, todas as mulheres foram se deitar. Mas Laura e a menina continuaram ali, em transe, sem pronunciar nenhuma palavra. Cada uma com seus pensamentos. Não importava qual seria a situação, elas eram duas pessoas livres. Com a capacidade de buscar a felicidade dentro de si, sem depender de nada.
E elas esperavam com paz de espírito, em algum momento de suas vidas, tudo pudesse ser como em uma história que os livros carregam, onde o amor possa libertar as almas que vivem sem saber viver.

VANDERSON PIRES

15 de nov. de 2008

VELÓRIO EM COMUM

Cansados de uma vida desinteressante, simplesmente morreram. Ninguém soube como se deu o passamento. Aparentemente não houve motivo, explicação. Apenas se foram. Não acreditando em vida após a morte, desapareceram sem deixar ao menos que alguém tivesse a perspectiva romanesca de que eles ficariam saboreando do além a curiosidade alheia em seus velórios.

Embora próximos, com os mesmos conhecidos, a movimentação foi diferenciada nas capelas onde ficaram os corpos. Um velório, discreto, reuniu alguns familiares, amigos, professores e o cachorro – agora sem dono – que teve livre acesso à sala principal e permaneceu ao pé da mãe do defunto. O pesar era profundo, mas com pouco choro. Ao outro, disputado, compareceram os familiares, 14 tios, 49 primos, 4 avós e uma bisavó; as mulheres de sua vida, cerca de 75, também apareceram; foi um reencontro de antigos distantes – quase uma festa com direito a carpideiras. Velórios diversos para existências diferentes.

Mas o fim é algo unívoco, pois ele iguala tudo, converge todos a um ponto comum, reduzindo existências distintas ao mesmo banquete para os vermes. Os fins nunca justificaram os meios. Maquiavel jamais disse o contrário. Os meios não precisam de um fim: se auto-justificam nas próprias ações. O viver não busca nada além de si próprio, ele quer apenas ser livre, verdadeiro, não a ilusão de felicidade que deforma nossas diferenças em interesses que só nos propicie o deleite da vida material.

E assim, a morte do dia-a-dia, ainda que apenas simbólica, lhes fez o bem de descansarem da falta de sentido das coisas, dos comentários sobre suas carreiras profissionais, da comparação. Os semblantes tornaram-se serenos como só ficavam depois de uma conversa etílica de bom gosto com amigos.

CAETANO PROCOPIO
MARCELO TEIXEIRA