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26 de out. de 2009

JESUS SE PARECE COMIGO

Temos quase o mesmo tempo de vida. Uso barba, ando a pé, sou pobre, tenho que fazer milagres a todo momento. Multiplico qualquer comida. Desamasso o pão que o diabo amassou e como. Sou anarquista. Acredito em uma sociedade mais justa. Acho que falta amor no coração das pessoas. Já trabalhei como carpinteiro. Fui criado por um padrasto. Conheço algumas mulheres que as pessoas tentam difamar e as chamam de prostituta. Sou amigo de bandido, traficante...
Não acredito em governo, assim como ele não queria a dominação de Roma. As vezes falo com um amigo imaginário também. Enfim, somos bem parecidos...

VANDERSON PIRES

1 de out. de 2009

HITCHCOCK: SUSPENSE E AMOR

Alfred Hitchcock faleceu no dia 29 de abril de 1980, aos 80 anos de idade.

Em seis décadas de atuação dirigiu mais de 50 filmes.

Apesar da industria cinematográfica tê-lo transformado no “mestre do suspense” e a consagração propiciado grande notoriedade, o epíteto não foi fiel ao conteúdo da obra hitchcockiana, deixando em segundo plano aspectos muito mais relevantes.

Hitchcock, muito mais que um mero mentor do susto, criou personagens psicologicamente complexos, dilacerados pelo turbilhão dos sentidos.

A atmosfera sombria de seus filmes é o retrato do desespero humano frente a uma realidade imutável.

O amor é um sentimento distante, inacessível, principalmente quando visto sob o prisma das personagens femininas, ausentes e gélidas.

O grande drama dos tipos criados pelo diretor está na condição de jamais conseguirem se livrar de seus medos e perversões.

A felicidade é uma ilusão perdida nos temores e obsessões produzidos pelo inconsciente.

O amor torna-se um objetivo impossível de ser concretizado: em "Psicose" ele só consegue produzir mortes; em "Um Corpo que Cai", é a “inútil procura de um ideal vazio”; em "Os Pássaros", não resiste à incompreensão "puritana", simbolizada nos constantes ataques das aves.

O escritor norte-americano Henry James foi quem talvez melhor definiu a figura conturbada de Alfred Hitchcock. Para ele, o cineasta "não conheceu uma hora de equilíbrio em sua vida".

CAETANO PROCOPIO

2 de set. de 2009

O DIREITO DE DEFESA

Evandro Lins e Silva foi um dos mais eminentes advogados deste país. Seguramente pode-se afirmar que durante décadas de militância profissional, o Tribunal do Júri foi a sua casa. Certa vez disse que seria o local onde gostaria de morrer.

As atividades do Dr. Evandro jamais se restringiram aos atributos do notório causídico. Sempre se destacou como um incansável defensor das liberdades. Esteve no “front” combatendo duas ditaduras. Sofreu perseguição devido suas convicções políticas alinhadas às causas dos mais necessitados. Apesar de se considerar um crédulo no socialismo tinha plena consciência da realidade objetiva e das limitações do processo histórico brasileiro.

Muitos perseguidos bateram à porta de seu escritório em súplica: Evandro Lins e Silva (segundo ele próprio) defendeu inumeros acusados de crimes políticos durante os períodos da ditadura varguista e do regime militar pós 1964. A ânsia e o sentimento por justiça o motivaram permanentemente, inclusive quando se envolveu em polêmicas como a do caso Doca Street. Sua aguçada sensibilidade e sua visão humanista fizeram com que se apresentasse como advogado de defesa do líder do MST, José Rainha, quando este era acusado de assassinato no Espírito Santo.

Quando mais um dia transcorria na sua vida já nonagenária, logo após retornar de Brasília, onde recebeu uma láurea da República, ao deixar o aeroporto no Rio de Janeiro, alguns passos e um súbito lapso motor o levou ao chão. E de lá não mais levantaria. Ele se foi em dezembro de 2002, peremptoriamente, sem ao menos poder exercitar o direito de defesa pelo qual sempre lutou durante toda vida.

CAETANO PROCOPIO

11 de ago. de 2009

POR UMA GEOGRAFIA NOVA


No dia 24 de junho de 2001 morria em S. Paulo um dos mais destacados intelectuais brasileiros: o professor Milton Santos.

Nascido em Brotas de Macaúbas no Estado da Bahia, após seus estudos secundários, cursou Direito em Salvador. Apesar do bacharelado no curso jurídico, foi como Geógrafo que desenvolveu toda sua vasta obra. Seus estudos se concentraram principalmente na conceituação e definição do espaço geográfico e as relações deste com a dinâmica social.

Em um dos últimos trabalhos aborda o fenômeno da globalização, suas implicações na realidade brasileira e a necessidade de um projeto autônomo de desenvolvimento nacional capaz de refrear as imposições desse modelo autoritário e hegemônico.

Lecionou em importantes universidades no exterior durante o tempo do exílio, após o golpe militar de 1964. Com o retorno ao país, tornou-se titular de uma cátedra no curso de geografia da USP.

A importância de Milton Santos vai além do campo acadêmico. Suas reflexões permitiram desvendar os dilemas produzidos pelo capitalismo tanto no contexto nacional quanto mundial expondo outras possibilidades ao progresso humano.

Ajudou a redefinir os próprios rumos da disciplina superando o empirismo muito arraigado nas teses dos autores clássicos, que viam o fenômeno geográfico essencialmente relacionado aos aspectos da paisagem e do relevo.

A geografia de Milton Santos centra seu foco na ação humana como meio transformador do espaço, além de possuir papel decisivo na construção de um conhecimento revigorado e afinado com os anseios de uma nova realidade que possibilite aos homens construir uma sociedade verdadeiramente solidária.


CAETANO PROCOPIO

15 de jun. de 2009

A PRIVATIZAÇÃO DO MUNDO

por ROBERT KURZ [*]

É de supor que a natureza já existisse antes da economia moderna. Daí o facto de a natureza por si própria ser grátis, sem preço. Isso distingue os objectos naturais sem elaboração humana dos resultados da produção social, que já não representam a natureza "em si", mas a natureza transformada pela actividade humana. Esses "produtos", diferentemente dos objectos naturais puros, nunca foram de livre acesso; desde sempre estavam sujeitos, segundo determinados critérios, a um modo de distribuição socialmente organizado. Na modernidade, é a forma da produção de mercadorias que regula essa distribuição no modo do mercado, segundo os critérios de dinheiro, preço e procura (solvente). Mas é um problema antigo que a organização da sociedade tenda a obstruir também o livre acesso a um número crescente de recursos pré-humanos da natureza. Essa ocupação traz, das mais diversas formas, o mesmo nome que os produtos da actividade social, a chamada "propriedade". Ou seja, acontece um quiproquó: outrora livres, os objectos naturais não elaborados pelo ser humano são tratados exactamente como se fossem os resultados da forma de organização social, e daí submetidos às mesmas restrições.

A mais antiga ocupação dessa espécie é a da terra. A terra em si não é naturalmente o resultado da actividade produtiva humana. Por isso também teria de ser, em si, de livre acesso. Quando muito, a terra já transformada, lavrada e "cultivada" poderia estar submetida aos mecanismos sociais; e, nesse caso, teria de se tornar propriedade daqueles indivíduos que a cultivaram. Mas, como se sabe, não é exactamente esse o caso. Justamente a terra ainda de todo inculta é usurpada com violência. Já na Bíblia há a disputa entre lavradores e criadores de gado por território (Caim e Abel) e, entre os pastores nómadas, por "pastos mais férteis". A usurpação do solo "virgem" é o pecado original e hereditário da "dominação do homem sobre o homem" (Marx). As aristocracias de todas as altas culturas agrárias repressivas se formaram na origem por essa apropriação violenta da terra, literalmente à clava e dardo. Contudo a propriedade nas culturas agrárias pré-modernas nem de longe se parecia com a propriedade privada no sentido atual. Isso significava, antes de tudo, que a propriedade não era exclusiva ou total. A terra podia ser utilizada e cultivada também por outros, que em troca pagavam certos tributos (a renda feudal na forma de víveres ou serviços) aos proprietários, estes originariamente violentos. Mas havia ainda possibilidades de uso gratuito. Por exemplo, em muitos lugares, os camponeses tinham a permissão de conduzir seus porcos até às terras incultas do senhor feudal, segar ali forragens crescendo livremente ou recolher outras matérias naturais. Diferentes possibilidades de uso livre nunca deixaram de ser controversas, como o direito à caça e à pesca. Quando os senhores feudais tentavam estabelecer proibições nesse sentido, estas quase nunca eram obedecidas. Assim, o caçador e o pescador ilegais passaram a figurar entre os heróis da cultura popular pré-moderna.

A DITADURA DA PROPRIEDADE

A propriedade privada moderna reforçou monstruosamente a submissão da natureza "livre" à forma da organização social, obstruindo assim o acesso aos recursos naturais com um rigor nunca visto. Essa intensificação da tendência usurpadora tem sua razão no facto de a ocupação ser efectuada agora não mais pelo acto pessoal e imediato de violência, mas pelo imperativo económico moderno, representando uma violência "coisificada" de segunda ordem. A violência armada imediata manifesta-se ainda hoje na ocupação dos recursos naturais, mas ela é já coisificada de forma institucional na própria figura da polícia e do Exército. A violência que sai dos canos das espingardas modernas já não fala por si mesma; ela tornou-se mero agente do fim em si mesmo económico. Esse deus secularizado da modernidade, o capital como "valor que se autovaloriza" incessantemente (Marx), não aparece, porém, apenas na figura de uma coisificação irracional; ele é ainda muito mais ciumento que todos os outros deuses antes dele. Por outras palavras: a economia moderna é totalitária. Ela tem uma pretensão total sobre o mundo natural e social. Por isso, tudo o que não está submetido e assimilado à sua lógica própria é para ela fundamentalmente uma espinha na garganta. E, como sua lógica consiste única e exclusivamente na valorização permanente do dinheiro, ela tem de odiar tudo o que não assume a forma de um preço monetário. Não deve haver nada mais debaixo do céu que seja gratuito e exista por natureza. A propriedade privada moderna representa somente a forma jurídica secundária dessa lógica totalitária. Ela é, por isso, tão totalitária quanto esta: o uso deve ser um uso exclusivo. Isso vale particularmente para os recursos naturais primários da terra. Sob a ditadura da propriedade privada moderna, não é mais tolerado nenhum uso gratuito para a satisfação das necessidades humanas, além das oficiais: os recursos têm de servir à valorização ou ficar em pousio. Dada a forma da propriedade privada, mesmo a parte da terra que o próprio capital não pode de modo nenhum usar deve ser excluída de qualquer outro uso. Essa imposição descabida suscitou repetidas vezes o protesto social. Na época anterior a 1848, uma experiência crucial para o jovem Marx, amiúde enfatizada na sua biografia, foi a discussão em torno da "lei prussiana contra o roubo de lenha", que queria proibir os pobres de recolher gratuitamente a lenha nas florestas. O conflito sobre o uso livre de bens naturais, sobretudo da terra, jamais cessou em toda a história do capitalismo. Mesmo hoje, em muitos países do Terceiro Mundo, há movimentos sociais de "ocupantes da terra" que colocam em questão a ditadura totalitária da propriedade privada moderna sobre o uso do solo.

No desenvolvimento do moderno sistema produtor de mercadorias, o problema primário do acesso a recursos naturais gratuitos foi sobrepujado pelo problema secundário do acesso a recursos "públicos", directamente relacionados ao todo da sociedade: as chamadas infraestruturas. Com a industrialização capitalista e a inerente aglomeração de massas gigantescas de seres humanos (urbanização), surgiram carências sociais, tornando necessárias medidas que não podiam ser definidas pela lei do mercado, mas somente pela administração social directa. Por um lado, trata-se agora de sectores inteiramente novos, resultantes do processo de industrialização, como o serviço público de saúde, as instituições públicas de ensino (escolas, universidades, etc.), as telecomunicações públicas (correio, telefone), o abastecimento de energia e os transportes públicos (caminho de ferro, metropolitano, etc.). Por outro lado, também os recursos naturais antes livremente acessíveis sem nenhuma organização social e os processos vitais humanos que se efectuam por si mesmos tiveram de ser socialmente organizados e colocados sob a administração pública: é o caso do abastecimento público de água potável, da recolha pública de lixo, dos esgotos públicos etc., chegando aos sanitários públicos nas grandes cidades. Sob as condições do moderno sistema produtor de mercadorias, a "administração de coisas" pública e colectiva não pode assumir senão a forma distorcida de um aparelho burocrático estatal. Pois a forma moderna "Estado" representa somente o reverso, a condição estrutural e a garantia do "privado" capitalista; o Estado não pode, por natureza, assumir a forma de uma "associação livre". A administração pública de coisas permanece assim nacionalmente limitada, burocraticamente repressiva, autoritária e ligada às leis fetichistas da produção de mercadorias. Por isso os serviços públicos assumem a mesma forma-dinheiro que a produção de mercadorias para o mercado. Ainda assim não se trata de preços de mercado, mas somente de tarifas; algumas infra-estruturas até são oferecidas gratuitamente. O Estado financia esses serviços e agregados de coisas somente para uma pequena parte, por meio de tarifas cobradas dos cidadãos; no essencial, eles são subvencionados com a taxação dos rendimentos capitalistas (salários e lucros). Desse modo, a administração pública de coisas permanece ligada ao processo de valorização do capital.

A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO

Por um período de mais de cem anos, os sectores do serviço público e da infra-estrutura social foram reconhecidos em toda parte como o necessário suporte, amortecimento e superação de crises do processo do mercado. Nas últimas duas décadas, porém, impôs-se no mundo inteiro uma política que, exactamente às avessas, resulta na privatização de todos os recursos administrados pelo Estado e dos serviços públicos. De modo algum essa política de privatização é defendida apenas por partidos e governos explicitamente neoliberais; há muito ela prepondera em todos os partidos. Isso indica que não se trata aqui só de ideologia, mas de um problema de crise real. Seguramente, desempenha um papel nisso o facto de a arrecadação pública de impostos retroceder com rapidez por conta da globalização do capital. Os Estados, as Províncias e as comunas super-endividadas em todo o mundo tornaram-se factores de crise económica, ao invés de poderem ser activos como factores de superação da crise. Uma vez delapidadas as "pratas" dos sistemas socialmente administrados, as "mãos públicas" acabam por assemelhar-se fatalmente às massas de vítimas da velhice indigente, que nas regiões críticas do globo vendem nos mercados de segunda mão a mobília e até a roupa para poderem sobreviver. Porém o problema reside ainda mais no fundo. No âmago, trata-se de uma crise do próprio capital, que, sob as condições da terceira revolução industrial, esbarra nos limites absolutos do processo real de valorização. Embora ele deva expandir-se eternamente, pela sua própria lógica, ele encontra cada vez menos condições para tal, nas suas próprias bases. Daí resulta um duplo acto de desespero, uma fuga para a frente: por um lado, surge uma pressão assustadora para ocupar ainda os últimos recursos gratuitos da natureza, por fazer até mesmo da "natureza interna" do ser humano, da sua alma, da sua sexualidade, do seu sono o terreno directo da valorização do capital e, com isso, da propriedade privada. Por outro, as infraestruturas públicas de propriedade do Estado devem ser geridas, também, por sectores do capitalismo privado.

SOCIEDADE AUTO-CANIBALÍSTICA

Mas essa privatização total do mundo mostra definitivamente o absurdo da modernidade; a sociedade capitalista torna-se auto-canibalística. A base natural da sociedade é destruída com velocidade crescente; a política de diminuição dos custos e a terceirização a todo o preço arruinam a base material das infraestruturas, o conjunto organizador e, com isso, o valor de uso necessário. Há tempos é conhecido o caso desastroso das ferrovias e, de modo geral, dos meios de transporte, outrora públicos: quanto mais privados, tanto mais deteriorados e mais perigosos para a comunidade. O mesmo quadro se constata nas telecomunicações, nos correios etc. Quem hoje precisa, com uma mudança de casa, mandar instalar um telefone novo passa por incumprimento de prazos, confusão de competências entre as instâncias "terceirizadas" e técnicos pseudo-autónomos e praguejantes. O correio alemão, que se transformou num consórcio e global player ansioso por sua capitalização nas Bolsas, em breve distribuirá cartas na Califórnia ou na China; em troca, o serviço mais simples de entrega mal continua a funcionar internamente. Que prodígio sectores inteiros de actividade serem ajustadas a salários baixos, as zonas de entrega de poucos carteiros dobradas e triplicadas, e as filiais, extremamente desguarnecidas! As estações de correio ou de caminho de ferro transformam-se em quilómetros cintilantes de lojas estranhas à sua alçada, enquanto a qualidade do serviço próprio decai. Quanto mais estilizados os escritórios, tanto mais miserável o serviço.

PRIVATIZAÇÃO —> AUMENTO DE PREÇOS

Apesar de todas as promessas, a privatização significa cedo ou tarde não só a piora mas também o aumento drástico de preços. Porque és pobre, tens de morrer mais cedo: com a privatização crescente dos serviços de saúde, essa velha sabedoria popular recebe novas honras mesmo nos países industriais mais ricos. A política de privatização não dá trégua nem sequer às necessidades humanas mais elementares. Na Alemanha, as casas de banho das estações de combóio passaram a ser recentemente controladas por uma empresa transnacional chamada "McClean", que cobra pela utilização de um mictório tanto como por uma hora de estacionamento no centro da cidade. Portanto agora já se diz: se és pobre, tens de mijar nas calças ou aliviar-te ilegalmente!

A privatização do abastecimento de água na cidade boliviana de Cochabamba, que, por determinação do Banco Mundial, foi vendida a uma "empresa de água" norte-americana, mostra o que ainda nos espera. Em poucas semanas, os preços foram elevados a tal ponto que muitas famílias tiveram de pagar até um terço dos seus rendimentos pela água diária. Juntar água da chuva para beber foi declarado ilegal, e ao protesto respondeu-se com o envio de tropas. Logo também o sol não brilhará de graça. E quando virá a privatização do ar que se respira? O resultado é previsível: nada funcionará mais, e ninguém poderá pagar. Nesse caso, o capitalismo terá de fechar tanto a natureza como a sociedade humana por "escassez de rentabilidade" e abrir uma outra.
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[*] Filósofo alemão. O original deste artigo encontra-se em http://www.krisis.org ("Die Privatisierung der Welt"). Tradução de Luís Repa publicada na Folha de São Paulo de 14/Jul/02.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

15 de abr. de 2009

SARTRE E O EXISTENCIALISMO

"A escolha que o homem faz de si mesmo identifica-se absolutamente com aquilo que se chama seu destino"


"Jean Paul Sartre está morto". Esta era a manchete estampada na capa do Caderno Ilustrada em 16 de abril de 1980.

Filosofo, escritor, dramaturgo, escreveu, aproximadamente, 15 mil páginas (cerca de 50 volumes) nos mais diversos gêneros. Morreu no dia 15 de abril de 1980.

Nascido em uma família de classe média parisiense no dia 21 de junho de 1905, notabilizou-se como o grande artífice da filosofia existencial em bases atéias.

Apesar dos círculos culturais "alternativos" tê-la transformado num modismo em meados do século, devido a grande popularidade atingida pela figura de Sartre, o epíteto “existencialismo” causou vigorosa repulsa nos mais amplos setores sociais: do "stablisment" aos comunistas. A igreja o consagrou como uma heresia chegando até mesmo a colocar o nome de Sartre no índex dos autores proibidos pela cristandade.

Opostamente aos ataques não só da igreja e dos legitimadores do sistema mas também do pensamento reformista e dos comunistas, a teoria existencial sartreana não acena ao individualismo nem mesmo ao pessimismo, pelo contrário, sua atitude é de completa ruptura com o sistema de dominação burguesa vicejando o limiar de um novo homem absolutamente livre e totalmente responsável por essa condição - é daí que se justifica o seu ateísmo e sua postura humanista radical.

Sartre acreditava na liberdade como uma condição intrínseca ao homem, entretanto, a via de uma forma concreta, limitada na condição humana. Para ele o ser nasce e somente depois é que se descobre como consciência, daí o sentido da expressão "a existência precede a essência", antes disso ele (o ser) não é nada, mas apenas uma possibilidade que irá se realizar.

Deste modo não há sentido em pensar numa natureza humana, pois, o homem, é sempre um projeto inacabado que vai se transformando conforme interage com os outros. O sentido dessa lógica existencial absurda é que ela emerge da gratuidade da existência e da necessidade do homem se justificar sem se prender a qualquer fator exógeno à sua condição de estar no mundo, tornando-o inventor da realidade, portanto, da sua própria essência e do ser. Da mesma forma que não se pode predefinir o homem, Deus é uma construção inútil, já que aquele, por ser o construtor de seu destino, não prescinde da existência deste.

Assim, cabe ao homem, uma vez que é o responsável pelo seu destino, escolher suas possibilidades: é ele, e somente ele, o responsável pela construção do mundo. Esta talvez seja a grande ousadia do pensamento sartreano, uma total e absoluta busca pela liberdade, que entrega ao ser a maior de todas as responsabilidades: a de construir a sua história, não mais presa ao individualismo mesquinho da sociedade burguesa, mas sim a uma escolha que ao mesmo tempo é individual e universal, conjugada na construção coletiva e solidária do mundo, proporcionando ao homem libertar-se de todas as formas de opressão e conformação, matando a Deus e a seus súditos na Terra e imprimindo uma ordem de conduta arraigada na reflexão irrestrita sobre o papel da conjuntura e suas efetivas implicações na consciência – mas sem esquecer o constante exercício de superação empreendido por esta, à medida que sugere a radicalização e a ação integrada dos indivíduos.

O existencialismo sartreano é uma ruptura com o pensamento tradicional. Significou um avanço nas discussões travadas no século XIX e o aprofundamento dos conceitos empreendidos pela filosofia existencial de Heiddger e da fenomenologia de Husserl. Exercitou o método dialético como um remédio ao positivismo e ao racionalismo: marcantes nas filosofias legitimadoras do sistema de dominação social instituído pela burguesia.

As idéias de Sartre tomaram um rumo determinante durante a 2ª guerra, deixando o conteúdo elitista de suas obras iniciais (que ele próprio assinalaria posteriormente); a traumatizante experiência vivida com a ocupação nazista criou um forte sentimento de cumplicidade com os outros e a necessidade pungente de uma fraternidade irrenunciável. Filosoficamente, no pós-guerra, caminhava nas imediações do marxismo. A conjunção só não era evidente aos olhos míopes dos comunistas, que presos ao oficialismo sectário imposto pelas II e III internacionais, execraram as idéias de Sartre associando-as à concepções estigmatizadas no subjetivismo burguês.

A adesão aos quadros do PC francês em 1952 lhe custou a amizade de velhos companheiros, entre eles, Merleau-Ponty, que a viam como uma inaceitável conformação às práticas totalitárias do stalinismo, impregnadas na estrutura dos partidos comunistas. A justificativa de Sartre era a de que o momento exigia empreender uma ação vigorosa e efetiva contra a ortodoxia liberal vigente. Mas em 1956, a invasão da Hungria pelos tanques soviéticos o precipitaram a romper com "O Fantasma de Stalin", sem, contudo, deixar de manter-se vinculado às teses marxistas.

Sua lucidez pôde ser posta a prova em todos os momentos da vida. Assumiu-se fruto de uma contradição, a de ser um filho rebelde da burguesia. Apesar de entender que essa contradição está na própria origem elitista do intelectual, no momento em que toma partido, não aquele para o qual foi recrutado, ele rompe, necessariamente, com as instituições que o forjaram, solidarizando-se, incondicionalmente, aos oprimidos. Ele, dessa forma, explica apenas exemplificando, a sua efetiva participação na questão argelina e nos incidentes de maio de 1968, como uma vigorosa reação à alienação e ao conformismo reinantes e apregoados pelas ideologias burguesas.

A longa trajetória desse grande pensador do homem contemporâneo reconstrói com louvor o precípuo papel dos intelectuais e ultrapassa os limites filosóficos determinado pelo positivismo e suas derivações. Pode-se resumir a postura militante que julgou fundamental a todos que assumem uma posição legítima frente à realidade, "é preciso ter as mãos sujas".

CAETANO PROCOPIO

7 de fev. de 2009

AS MELHORES TRILHAS E OS MELHORES FILMES

Várias vezes me questionei se achava mais interessante um filme ou a sua trilha sonora. Em certos casos essa escolha se torna muito difícil.

O que falar da combinação Alfred Hitchcock-Bernard Herrmann? As trilhas sonoras de “Psicose” e “Um corpo que cai” espelham de tal forma o ambiente sinistro dos filmes que não sei ao certo o que provoca maior espanto, a cena ou o som. Martin Scorsese foi outro diretor que soube aproveitar o talento de Herrmann. O compositor preferido de Hitchcock compôs a música tema do atormentado “Táxi Driver”.

E se o assunto são parcerias, também merece referência a união muito bem sucedida de Coppola e Nino Rota (este, grande parceiro de Fellini) na trilogia do Poderoso Chefão. A saga da família Corleone ambientada como uma epopéia com grandioso fundo musical. Coppola não precisou associar-se para realizar a trilha Sonora de “Apocalipse Now”, mas o repertório condiz com a tetricidade das cenas de um Vietnã surreal.

Em ‘2001, uma odisséia no Espaço”, Stanley Kubrick dá a exata noção do que a simbiose cena-música pode proporcionar. As composições “Assim falou Zaratustra” e “Danúbio Azul” acompanham, respectivamente, dois momentos culminantes do filme: no primeiro, a fabulosa cena do nosso ancestral primitivo destruindo uma pilha de ossos ao som da sinfonia de Richard Strauss; no segundo, o balé espacial sincronizado com a suavidade da valsa de Johann Strauss. Já em “Laranja Mecânica”, Kubrick escancara a perversidade e a contradição humanas ao coligir a violência mórbida do personagem vivido por Malcoln Mc Dowell, à virtuosidade estética do musical “Cantando na Chuva”, numa cena ainda chocante para o ano de 1971, em que Dowell espanca uma mulher na frente do marido enquanto cantarola e dança “I singin’ in the rain”.

Enfim, esta lista, longe de ser exaustiva, é só uma pequena amostra da riqueza musical de algumas das mais importantes obras do cinema. Muitas que não estiveram aqui mencionadas certamente mereceriam destaque, entretanto, a falta de repertório e a memória limitada não me permitiram tal intento. Esta tarefa também poderia se tornar cansativa demais ao leitor caso minha disposição (ou dedicação) fosse maior.

E não percamos mais tempo. A próxima sessão pode estar prestes a começar (...).

CAETANO PROCOPIO

publicado originalmente no site CINE TOTAL
http://www.cinetotal.com.br/critica.php?cod=57

2001: DA FICÇÃO A REALIDADE

Não me lembro ter visto um filme tão marcante quanto “2001, uma odisséia no espaço”. Muito além de uma simples aventura espacial, as longas seqüências meticulosamente trabalhadas por Stanley Kubrick fogem da perspectiva de uma realidade fantástica que corresponda ao ambiente insólito da ficção científica. São um fascinante espetáculo visual em que diretor procura fazer uma profunda reflexão sobre a condição humana.

O enigmático monolito negro que subitamente surge entre nossos ancestrais primitivos há 4,5 milhões de anos representa a aurora do homem - um nascimento que significa o início da experiência cognitiva na terra. De uma pilha de ossos o primeiro exercício da inteligência incipiente: o que parece uma simples tomada inserida no roteiro nos mostra, com impressionante vigor, a associação entre conhecimento, violência e poder.

Para Kubrick, saber e poder nascem juntos no homem, são faces de uma mesma relação dialética que explica a dominação. O osso arremessado aos céus se transforma numa nave espacial. Só o tempo os separa. Se aquele primeiro artefato humano possibilitou o nosso ancestral matar um dos seus, essa a razão que também irá justificar o vôo da espaçonave. A História possui um único condão que se resume numa perpétua tentativa de se subjugar o semelhante.

Isso explica porque o computador HAL-9000 para tomar o controle da missão a Júpiter tenta eliminar todos os tripulantes: uma máquina que consegue reproduzir as emoções humanas, por fim, acaba assimilando suas intenções. A retomada da missão só foi possível quando o último integrante humano elimina o membro eletrônico promovendo uma reconquista civilizatória.

A chegada do único sobrevivente ao seu destino leva o homem não aos confins do universo, mas talvez a si mesmo, numa possibilidade da redescoberta daquilo que o originou a 4,5 milhões de anos. Em 2001 Kubrick transforma a ficção científica numa legítima odisséia humana.

CAETANO PROCOPIO

publicado originalmente no site CINE TOTAL
http://www.cinetotal.com.br/critica.php?cod=80

23 de jan. de 2009

A BALADA NÚMERO UM DE CHOPIN

O jovem Wladyslaw Szpilman senta-se defronte ao piano.

Está maltrapilho, sedento, faminto, tísico.

Em uma casa quase em ruínas, começa tocar a Balada número um de Chopin para o Capitão alemão Wilm Hosenfeld.

A 2ª Guerra já está nos estertores: a Polônia, às portas da desocupação alemã e Varsóvia, praticamente destruída.

O judeu Wladyslaw havia passado os últimos anos fugindo da morte e ali, escondido no meio de escombros, depara-se com o suposto algoz.

Mas ao invés da morte, ele reencontra o seu piano.

O capitão Hosenfeld não o aniquila, ao contrário, o acolhe.

Pouco tempo depois, os russos libertam Varsóvia e Hosenfeld é preso.

Permanece na prisão até morrer em 1952.

Com a musica de Chopin, se deu a salvação de um.

O militar alemão não foi o verdugo do refugiado judeu.

Não cumpriu o destino que a história tragicamente havia lhe reservado.

Chopin poderia ter sido a salvação de ambos.

Mas os fatos assim não quiseram.

Numa guerra nunca há completamente vencedores e vencidos.

Apenas sobreviventes.

CAETANO PROCOPIO

5 de jan. de 2009

O CONDENADO

O ônibus estava vindo, mas custei a levantar-me. Estava cansado. Meu dia tinha sido péssimo. Enquanto ele não vinha, pois estava parado no semáforo, perguntei-me o que iria fazer quando chegasse em casa.

Nesse mesmo momento apareceu um senhor do nada. Ele caminhou até a mim e disse: “Jovem idiota, digno de pena!”. Andou mais um pouco e voltou. Olhando de soslaio, novamente me interpelou: “Sua vida é lastimável! Você é o reflexo do mundo em ruínas que você ajudou a construir. Sua alma está morta! Vai pro inferno seu tolo!” E continuou andando em linha reta, sem olhar para trás. Parecia uma cena de filme.

Eu estava sozinho no ponto. Olhei para os lados, meio sem graça, e parei o ônibus. Cheio como de costume, procurei um lugar onde pudesse me escorar. No trajeto, fiquei observando as pessoas e lembrando das palavras daquele velho louco. Uns ouvindo música, outros mexendo nos celulares, poucos lendo livros... E todos procuravam se entreter com alguma coisa. Isso me fez refletir sobre a forma como eu vivo. E percebi que o velho andarilho, que disse aquelas palavras aparentemente desconexas, tinha certa razão. Quantas coisas me conduzem em rebanhos e confundem-me no meio das multidões. Será que existe um mundo capaz de isolar cada indivíduo, para que sozinhos possamos entender o significado de nascer, consumir, procriar, consumir mais, mais... e por fim morrer? Diante dessa vida miserável eu poderia chorar por toda a eternidade. Bom, ficar pensando sobre isso me fez descer dois pontos depois do meu. Tive que andar bem mais.

Tudo quanto eu fazia de inútil nesta vida subiu-me à garganta e só tive um pensamento: chegar logo em casa para tentar dormir. E minha morada era uma pequena cela em um presídio que eu insistia em chamar de casa. Afinal, eu morava ali. Cumpria pena por assassinato. Não gostava de morar ali. Entretanto, eu havia matado minha alma. Sou um assassino que matou, com requintes de crueldade, a própria alma. Eu era um condenado. E aquele senhor, de alguma forma, sabia disso.

Sozinho, trancado no escuro, eu procurava me embebedar da escuridão. Sabia que no outro dia, logo pela manhã, tinha que trabalhar para amenizar minha pena. De acordo com as leis dos homens, o trabalho enobrece a alma. Mas a minha esta morta, pensei. Por que ainda tenho que trabalhar? E mesmo assim eu era obrigado a cumprir essa lei. Afinal, tinha que continuar vivendo. Era covarde demais para por um ponto final em tudo.

Nunca tive lembranças de nada. E agora estava atormentado com as palavras de um velho andarilho. Sempre procurei disfarçar meu crime. Procurava sorrir quando as situações pediam. Mas nunca me preocupei com os problemas do mundo. Nem com que os outros pensavam. Isso era fato. Quando ouvia algo sobre o mundo, fingia entender, mas no fundo eu não dava a mínima importância. E achava muito chato ouvir alguém comentando algo que pensava entender, por ter lido em algum jornal ou assistido no noticiário. Eu não lia jornais, não assistia TV.

Você só percebe que sua alma está morta quando nada mais tem importância. Tudo fica no automático. Sem questionamentos, sem motins e nem revoltas. A única coisa que realmente importa para um corpo sem alma é a santa trindade do capitalismo: dinheiro, poder e consumo, uma coisa levando a outra.

Sete horas da manhã ouço alguém gritar meu nome: “Acorda Sr. Willian Razo!” Levantei e fui encontrar com a rotina. E ela insiste em me ludibriar com a idéia de enriquecer com o próprio trabalho. Mais uma vez finjo que acredito.

Ao final do dia, novamente estava no mesmo ponto de ônibus. Ansioso para encontrar novamente aquele velho maldito. Queria entender como ele sabia que eu era um sem alma. Mas ele não veio. Talvez eu nunca mais o veja. Sei lá! A única verdade é a de que eu realmente sou um condenado.

Mais tarde, naquele mesmo dia, encontrei um livro na minha cela. Nele havia um marcador com a seguinte frase: “O Homem não tem corpo distinto da alma. O que chamamos de alma nada mais é que uma parte do corpo.” Depois de ler isso me veio a cabeça a expressão “morto-vivo”. Era isso. Eu era um morto-vivo como tantos outros espalhados pelo mundo. Todas essas circunstâncias fizeram-me entender o meu crime, cujo remorso eterno, o mais cruel e funcional dos castigos, eu já carregava comigo. Eu ainda estava vivo, condenado a viver morto-vivo.

VANDERSON PIRES