Total de visualizações de página

23 de ago. de 2010

O MITO DA MODERNIDADE

Marx não acreditava no fatalismo sacralizante da morte. O materialismo dialético empreendeu a idéia de processo à história, opondo-se à concepção descritiva e enciclopédica do iluminismo, tacitamente conivente com a noção apaziguadora do demiurgo. Para aquele a única força verdadeiramente criadora está na forma como historicamente se dá o desenvolvimento social, na cultura material do homem, que emerge como o ponto nevrálgico de tudo o aquilo que existe e possui sentido.

Esse processo, de certo modo, reproduz um movimento contínuo de superação de sucessivos modos de produção, o que poderíamos conceituar como o desenvolvimento material civilizatório. Da podridão daquilo que está sendo superado pelo conflito de classes reluz uma renovação social. Lenin acreditava nisso com o mesmo vigor com que os cientistas crêem na lei da transformação da energia.

As condições que justificaram a acepção do marxismo não pereceram, ou nas palavras de Sartre, "as circunstâncias que o engendraram não foram superadas". E não serão assim tão facilmente como regozijam-se em aclamar os sucessores do "laisse-faire, laisse-passaire". O capitalismo exige a constante transformação dos meios de produção para perpetuar a sua lógica seletiva que identifica e particulariza a realidade conforme suas demandas. Ele as vincula à idéia de progresso como se este fosse uma marcha inexorável em que toda humanidade deverá aderir. O conceito de progresso é tão falacioso quanto a própria concepção burguesa de democracia. Se no passado medieval ele foi considerado uma heresia aos valores da igreja, na renascença, com os emergentes endinheirados advindos da mercancia, converteu-se no fetiche da mercadoria. Hoje o mundo vive a compulsão do consumo de massas. As descobertas científicas mal surgem nos principais institutos de pesquisa do planeta e rapidamente transformam-se em elixires do nosso deleite cotidiano. Contudo, se a ciência e a tecnologia se desenvolvem com extrema velocidade, o mesmo não pode ser afirmado no que tange às relações humanas. As condições de vida, a cada dia, tornam-se mais precárias, especialmente onde a história ocupou-se de expor os efeitos mais agudos da expansão dos mercados.

A evolução do capitalismo não possui uma trajetória homogênea, linear. O seu decurso apresenta certas fissuras que desviaram sensivelmente o seu rumo original, evitando assim, um conflito de dimensões globais com os trabalhadores; o que de fato quase ocorreu com a proliferação dos ideais revolucionários na Europa, à partir da metade do século passado e que culminaram na Revolução Russa em 1917. A burguesia européia realizou concessões para não por em risco privilégios conquistados em séculos de pilhagens, e, principalmente, refrear os ímpetos dos bolcheviques. Ao mesmo tempo que formava-se uma base sindical expressiva no continente, os grandes proprietários (apoiados nos ideais dos sociais-democratas) buscaram uma aproximação com o movimento operário, para assim, atrelá-lo às "questões de estado", numa clara tentativa de mantê-lo sob a custódia das classes dirigentes. Os resultados desse ajuste foram catastróficos; primeiro porque promoveu reações no bojo das próprias elites, que fomentaram em certos países, a formação dos regimes de força no entre guerras; segundo, enfraqueceu a autonomia do operariado na Europa ocidental e revigorou, através do "Walfare State", as energias potenciais do liberalismo. Se o capitalismo tivesse seguido a sua tendência primitiva, ele já teria se esvaído nas próprias vísceras.

Baluarte do nosso tempo, o progresso não nos redimiu à civilização como pensavam os "pontífices das luzes". O mito da modernidade desmoronou diante das desigualdades não derrogadas pela experiência da livre iniciativa. A modernização, mais do que nunca, está vinculada ao processo de acumulação da riqueza. E cabe a esta, escolher os destinatários e o alcance dos investimentos daquela. O avanço tecno-científico é o corolário dessa apoderação ao ser aplicado de forma a satisfazer os préstimos da mais-valia. Os contornos geográficos definidos pela relação espaço-produção materializam uma lógica seletiva e injusta, tolerante com a situação de penúria e exclusão, mantida pela intensa segregação imposta às maiorias, reprimidas, imobilizadas e alienadas pelo aparato político-ideológico do Estado. Elas estão completamente destituídas de instrumentos que lhes garantam acesso à cidadania, inclusive, renegadas na própria organização espacial que define as áreas beneficiadas pelo desenvolvimento econômico. A ciência e a tecnologia subordinam-se inexoravelmente aos movimentos do capital. É este quem define os limites da atividade criadora, bem como os destinatários dos benefícios oriundos dessa marcha.

Os economistas (ortodoxos), senhores oniscientes da nossa realidade, não conseguem destrinçar o hiato em que estão mergulhadas as sociedades contemporâneas: não sabem o que fazer com o desemprego estrutural e com a miséria imanente, resultados do modelo econômico em voga. Para eles essa situação é apenas uma anomalia circunstancial do sistema que pode ser corrigida com medidas paliativas. A questão está em não comprometer as arestas sobre as quais se ergue o edifício do neo-liberalismo. Não assumem (nem poderiam!) que o laureado palanque do progresso tem muito de retórico, evidentemente adornado por uma composição ilusória e totalitária da realidade que se expressa na tese do mercado total.

A tecnologia está reduzindo o número de trabalhadores nas linhas de produção, em virtude da crescente automação e informatização das tarefas. O mercado de trabalho, cada vez mais seleto e especializado, convalida a precarização de suas relações de forma irremediável. Apenas aqueles trabalhadores com alto grau de especialização tem condições de reivindicar melhores condições de emprego e salários na atual conjuntura. Eles são imprescindíveis na organização burocrática, ou mesmo funcional das empresas globalizadas. Uma alternativa aclamada pelos especialistas de plantão encontraria respaldo em políticas compensatórias, que serviriam de arrimo para amenizar os efeitos danosos das mudanças. Mas o altíssimo grau de concentração da economia moderna inviabiliza o pleno aproveitamento da força de trabalho existente. Seria preciso uma ação efetiva do Estado para viabilizar um amplo processo de formação e capacitação de mão de obra, mesmo assim, se nele existissem condições funcionais adequadas e capacidade operacional plena. Ao invés disso, estão reduzindo suas dimensões e competências para aproximá-lo do ideal exigido pela globalização.

O que há décadas é chamado por economistas sociólogos e historiadores de "imperialismo", não foi superado pela criação de um espaço econômico universalmente integrado, pelo contrário, apenas adquiriu uma roupagem diferente, resguardando princípios que o consolidaram como um sistema de poder opressor. Quando o capitalismo esgota um matiz, ele entorna a situação já superada, noutra, que emerge de suas próprias contradições; ele não busca a solução destas e sim um consenso que o permita mudar de estratégia para não modificar seus alicerces, amenizando os efeitos da crise e passando por cima das reais causas que respondem por ela. Não há contestação da ordem mundial exatamente para que esta não seja desmascarada e não se crie uma consciência reflexiva sobre o poder.

O mapa mundi modifica-se como resultado de um processo histórico capaz de produzir realidades distintas mas interdependentes; a dos que ditam as regras do jogo e a dos que são impelidos a aceitá-las. As nações hegemônicas (hoje mais do que nunca representantes dos interesses das grandes empresas globais) cultivam e aproveitam-se da desorganização social dos países pobres e aspiram-lhes o máximo de dividendos, compensando os encargos que precisam cumprir dentro de seus limites, para manter o controle da ordem social vigente. As sociedades modernas modificam-se através de um movimento desigual e combinado, inerente à dinâmica do capitalismo, entretanto, mais sensível em determinadas regiões, onde se intensificam os reflexos (ou os efeitos) das relações de produção. Essas contradições mantém o progresso material vinculado ao desenvolvimento orgânico das forças produtivas em seu caráter segregador.

O século XX catalisou transformações iniciadas em seus antepostos reproduzindo-as em escala geométrica. O progresso é um signatário da barbárie e sua sintaxe (dentro da realidade de classes) prescinde de qualquer valor genuinamente humanista. O capitalismo não consegue definir uma solução harmônica para as mazelas de um mundo dividido, simplesmente por não ser essa a sua índole. Ao tentar por termo a um problema ele cria outros tantos e os reproduz indefinidamente. Sua intenção conciliadora não consegue deixar o campo da retórica, exatamente por ser a conciliação entre desiguais, um despropósito.

CAETANO PROCOPIO (18/1/99)