Hans Kelsen produziu uma das obras mais importantes do
direito moderno, “Teoria Pura do
Direito”. É neste trabalho que o renomado jurista praticamente define os atuais
contornos da disciplina jurídica apresentando uma proposta metodológica de
apenas trabalhar no âmbitos das normas. De certo modo Kelsen consagra a divisão
do saber proposta pelo positivismo ao limitar o campo de abrangência do direito
à inflexibilidade temática exigida pelo normativismo.
A compartimentação do conhecimento em "ciências
específicas", acompanha e dá subsídios ao movimento da divisão
internacional do trabalho, mascarando uma realidade contraditória, diluída pela
consciência burguesa de poder. Fundamentalmente, o direito arma-se com um repertório que lhe é definido pelo legado
do iluminismo - justifica uma fraternidade imanente em sociedades amplamente
dividas (o direito natural tratou de
guarnecer essas desigualdades na "natureza humana") e dirimidas pela
ação imparcial do Estado, como se este não exercesse uma representação.
Dissimula uma escolha já feita mas que precisa estar velada.
Os ritos processuais supostamente funcionam como o
suporte técnico-burocrático capaz de garantir o equilíbrio nas relações
jurídicas e, efetivamente, permitir a aplicação da justiça. Este complexo
sistema de regras visa afastar todo e qualquer qualquer vínculo político capaz
de obstaculizar a exatidão dos métodos científicos. Por trás do posicionamento
aparentemente insípido, existe uma postura eminentemente ideológica; ao
definir-se isento (por necessidade metodológica), o direito, não deixa de
opinar, pelo contrário, convalida uma ordem social dividida, afinando-se,
religiosamente, aos compromissos ideológicos que representa.
A norma jurídica tutela um patrimônio construído através
da luta de classes, acomodando antagonismos que se afirmam numa universalidade
ilusória, contida essencialmente na defesa da propriedade. A justiça (se é que
é possível o paralelo!) organiza-se em conformidade com a constituição que lhe é
dada pelo poder vigente, jamais ultrapassando tais limites. Qualquer tentativa
de desvincula-la dessa condição só encontraria terreno no campo da utopia
reformista, pois, não há como romper com o seu vínculo de classes fundamental.
Sua autonomia não ultrapassaria os limites funcionais da esfera de mediação a
que estaria proposta, fazendo valer não
mais que as prerrogativas de um poder de polícia, cerceada pela ordem civil que
ainda lhe daria competências. Nada além de um paliativo às tensões, longe de
atingir os inveterados privilégios incrustados na forma corporativa e
clientelista que a estrutura política burguesa consolida. É um equívoco notável
pensar na idéia de catarse sem um projeto político que insurja contra todas as
formas de dominação.
As ações isoladas s não coadunam com o espírito de
mudança que a participação e o
engajamento exigem. Elas necessitam fundir-se nos movimentos que integram um
conjunto de mudanças radicais a serem operadas à partir de uma nova consciência
social. O intuito reformador é uma perspectiva que já nasce abortada; mister de
uma investida muito mais ousada, envolvendo um esforço integrado de
reinvenção das próprias relações
sociais.
A retórica da lei é universal, entretanto, a ordem
social a que ela se destina "proteger" cria distinções internas
inconciliáveis. O direito não se propõe a solver essa contradição diabólica,
ela é o seu alimento, a sua razão de ser. A contumácia por um método de
investigação absolutamente imparcial, vestido do rigor absoluto da ciência positiva,
ajusta-se a uma conjuntura de amplas disjunções e que somente pereniza o regime
de exclusão. E a lei apenas tangencia os fatos, sem contudo, abraçá-los. Se não
os compreende na sua essência, naturalmente os interpreta como situações ideais
alheias à dinâmica do mundo.
O positivismo há tempos esgotou os seus mananciais. Ele
já não mais consegue responder às novas urgências e contradições da sociedade
"pós- industrial". Suas leis de ferro obstruíram a aproximação entre
o conhecimento científico (e nesse rol inclui-se o direito) e o processo
histórico, ao ignorarem o papel
fundamental desempenhado pela luta de classes.
A composição do ensino jurídico exerce um papel decisivo
na manutenção desse quadro. Ele responde pelos interesses e vontades das classes
sociais que o instituíram, reproduzindo aquilo que deve ser exigido pelas
necessidades do sistema de produção. Privilegia a formação profissional
especializada supervalorizando o aprendizado técnico, sobretudo conservando a
soberba do papel científico como se estivesse acima de posturas ideológicas. É
dessa maneira, o estudante, compelido a raciocinar em vias estreitas, e o
questionamento, a visão crítica do
conhecimento são posturas rejeitadas como se fossem heresias. Cabe ao educando
apenas resignar-se no seu papel de paciente, absorvendo as informações e
processando-as em paradigmas que se valem como uma herança imanente. O reflexo
desse sistema educador estéril, é a formação de técnicos especializados, mas
omissos perante uma ideologia que condena o engajamento político,
apropriando-se dos argumentos exatos da ciência. Conhece-se o direito, mas
ignora-se a sociedade com a qual este diametralmente relaciona-se. O apelo às
práticas de investigação puramente objetivas encerram padrões de análise eternizados
em axiomas do racionalismo afastando as possibilidades de questionamento e
reduzindo o empreendimento científico a um rol de procedimentos rigidamente
definidos nos conteúdos dos códigos e doutrinas. Mais importante que prender-se
à lei é ater-se ao estudo dos seus
aspectos constitutivos e sua validade. De nada adianta ser o ourives da
técnica sem enxergar o contexto que ela representa.
O direito legitima divergências sociais como se estas
fossem inerentes a uma natureza humana. É exatamente ai que reside a grande
contradição: sua função reguladora está orientada de cima, ela ratifica o poder
numa ordem de classes e estabelece os mecanismos para sua manutenção.
A superação da “pós-modernidade”
representa o viés da história atual. É o limiar do aprendizado político das
massas e o norte que direciona o trabalho dos especialistas do conhecimento;
promover a aproximação da ciência com a realidade social, no sentido daquela
ser a expressão mais vigorosa das potencialidades
humanas (em prol de objetivos comuns), livres da sua exclusiva função de
perpetuar o sistema produtor de mercadorias.
O esforço na reorientação dos objetivos de uma ciência
capaz de transformar o homem numa consciência universal, exige a mediação de um
interlocutor em bases filosóficas renovadas, disposto a romper os nexos
fundamentais da dominação burguesa. O conceito absenteísta de ciência soa como
a mais gritante defesa do "status quo" e intensifica a lógica espúria
da acumulação capitalista.
A globalização está propondo a tecnificação irrrestrita
da inteligência, convertendo-a em valores mensuráveis pelas estatísticas. A
modernização necessita de modelos rígidos que fundamentem os seus propósitos. E
o direito não foge dessa marcha, nem que para isso ele precise despojar-se do seu
velho humanismo de almanaque; e o faz: pari-passu com os desejos determinantes
da “nova ordem mundial”.
O que esperar de meros entendidos em leis amparados por uma cínica idéia de isenção
ideológica, totalmente discrepante de qualquer significado humanista? O
academicismo cria obstáculos à independência de abordagem impondo restrições ao
debate político. O abandono das fórmulas acabadas é necessário para a
consecução de vias alternativas ao conhecimento, convenientes com a dialética
social.
A viabilidade de novas propostas dependem da sua
inserção frente aos problemas imediatos. Imprescindível, para tanto, a livre
compreensão da contingência, para só então ser aplicada uma terapêutica capaz
de extirpá-los; do contrário, continuarão vivas velhas construções teóricas
fundadas em abstrações do pensamento clássico.
CAETANO PROCOPIO - 4/7/99