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2 de abr. de 2015

A UTOPIA ILUMINISTA

O conceito de modernidade originou-se a partir dos valores instituídos e adotados pela “civilização ocidental”. Os acontecimentos que precipitaram a revolução francesa de 1789 são imprescindíveis para compreensão do mundo atual. O liberalismo econômico só pode ser justificado sob a óptica da iniciativa individual: ele enxerga o direito de propriedade como uma necessidade natural do homem.

Aos olhos dos iluministas, a liberdade só pode ser compreendida levando-se em conta a ação humana no plano individual, exatamente por descartarem-na como um valor universal. Ela não só encontra fatores de auto-supressão, mitigada pelo desenvolvimento debilitado de suas energias potenciais, como também se dilui numa perpétua iminência de equidade que jamais se concretiza abortada pelas fronteiras intransponíveis da "livre iniciativa". O reconhecimento da propriedade como um direito imprescritível, a resguarda apenas aos que a detém. Se necessário, o Estado recorre ao seu aparato repressor para mantê-la, garantindo o regime de exclusão – pedra angular do desenvolvimento moderno. Inexiste a garantia de propriedade aos despossuídos. Estes não possuem o direito de reivindica-la, apenas de servi-la. Ela está legitimada em fundamentos jurídicos-legais que a tornam inviolável, e todo esforço no sentido de transgredi-la reverte na violenta contra-reação dos poderes instituídos. Marx dissecou profundamente as relações de classe e as implicações da propriedade nessas relações. Concentrou sua exegese na denúncia da apropriação privada dos meios de produção social como mola propulsora da exploração dos trabalhadores e o instrumento de formação e manutenção do capital.

A liberdade individual define-se intrinsecamente nos domínios da propriedade, aquela só existe se esta não for objeto de oposição. A burguesia imprescinde justificar o mundo segundo sua conduta: é a necessidade de se fazer universal sem de fato sê-la, uma vez que quando vê o homem, apenas enxerga o burguês. Para os críticos refratários ao conceito de democracia burguesa, a liberdade extrapola as proposições estanques dos tratados enciclopédicos, e seu conteúdo abandona o campo político-ideológico para confundir-se com a práxis. Ela aperfeiçoa-se para livrar o homem das peias que o afligem, tornando-o espelho da própria vontade, sem limites objetivos, mas necessariamente na consciência.

A tão decantada globalização não é estandarte de um mundo livre. O seu receituário mister apagar os resquícios da fase doméstica e concorrencial do capitalismo e viabilizar o domínio irrestrito dos oligopólios internacionais sob a égide financeira (Chesnais),  escorados no apelo indelével do livre cambismo e do monetarismo vitorioso. Na atual etapa evolutiva do capitalismo, o Estado perdeu a sua função primitiva de suporte dos mercados nacionais. Agora esses conglomerados são um poder acima dos Estados, reduzindo a pó tudo aquilo que não lhes interessa e agindo como única opção soberana do planeta.

A concentração da riqueza gera intolerância e barbárie. Retrato de sociedades em colapso, radicadas num modo de vida opressivo e desumano. A violência é a marca registrada de uma civilização pautada na competição desenfreada por posições e privilégios de toda espécie.

Num mundo em que prevaleçam relações verdadeiramente humanizadas (e solidárias), a propriedade perderá a sua razão de ser por tornar-se um valor ubíquo. Não haverá por que preservá-la, uma vez que todos passarão a usufruí-la. Ela destituir-se-à de sua essência original e desaparecerá no contexto. A supressão da propriedade privada a que Marx sempre se referiu é no sentido de libertá-la dos elementos formadores do capital, consequentemente, da finalidade especulativa e geradora do lucro. Fora dessa função ela não mais existe, ou melhor, não mais precisa ser definida uma vez que se torna um preceito comum.

O cosmopolitismo não se resume a novas facilidades de consumo. Ele representa um conjunto de ações que, necessariamente culminam no porvir da sociedade de classes. O desenvolvimento tecnológico por si só não significa uma solução para as mazelas humanas, pois, a sua forma de inovar multiplica os problemas gerados pelas contradições do sistema produtivo. Tornar o mercado um fenômeno cada vez mais integrado e uniforme é projetar seus entraves locais em escala global. A tendência natural é a de rechaçar tudo aquilo que estiver em desacordo com a sua progressão, provocando atritos ainda maiores onde, por força das condições históricas por ele mesmo criadas, as suas disposições não acompanham o movimento da vanguarda.

O traço característico deste final de século, indubitavelmente, é o autoritarismo disfarçado na ortodoxia neoliberal, o que revela o caráter antinômico da democracia. Se por um lado o livre jogo das forças do mercado é o responsável pelo progresso vertiginoso das ciências e das técnicas, ele também responde pelo abismo aberto entre os povos.

Enquanto continuarmos indulgentes com os apologistas do "mercado livre"  não avançaremos rumo a uma sociedade pautada no respeito mútuo e na solidariedade. Ao mercado só vale mesmo a proposta do "quem pode mais chora menos". Não há como domesticá-lo,  suas urgências e sua lógica transformadora estão orientadas no sentido da expansão do lucro,  seu único e derradeiro objetivo.

A burguesia tomou o lugar que na idade média fora da Santa-Sé e assumiu os destinos da humanidade. Substituiu o poder da fé pelo fetichismo da mercadoria (sem deixar de aproveitá-lo), assim como, a base da exploração do trabalho que de servil passou a assalariado. As mesmas forças contraditórias que instituiram o império do capital trazem no seu interior os elementos que um dia irão destruí-lo.

O capitalismo, como bem disse Marx, é o seu próprio coveiro. (JAN/1999)


CAETANO PROCOPIO