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14 de mai. de 2015

O DIREITO PRECISARIA SER MAIS QUE UMA CIÊNCIA!

Hans Kelsen produziu uma das obras mais importantes do direito moderno,  “Teoria Pura do Direito”. É neste trabalho que o renomado jurista praticamente define os atuais contornos da disciplina jurídica apresentando uma proposta metodológica de apenas trabalhar no âmbitos das normas. De certo modo Kelsen consagra a divisão do saber proposta pelo positivismo ao limitar o campo de abrangência do direito à inflexibilidade temática exigida pelo normativismo.

A compartimentação do conhecimento em "ciências específicas", acompanha e dá subsídios ao movimento da divisão internacional do trabalho, mascarando uma realidade contraditória, diluída pela consciência burguesa de poder. Fundamentalmente, o direito arma-se com  um repertório que lhe é definido pelo legado do iluminismo - justifica uma fraternidade imanente em sociedades amplamente dividas  (o direito natural tratou de guarnecer essas desigualdades na "natureza humana") e dirimidas pela ação imparcial do Estado, como se este não exercesse uma representação. Dissimula uma escolha já feita mas que precisa estar velada.

Os ritos processuais supostamente funcionam como o suporte técnico-burocrático capaz de garantir o equilíbrio nas relações jurídicas e, efetivamente, permitir a aplicação da justiça. Este complexo sistema de regras visa afastar todo e qualquer qualquer vínculo político capaz de obstaculizar a exatidão dos métodos científicos. Por trás do posicionamento aparentemente insípido, existe uma postura eminentemente ideológica; ao definir-se isento (por necessidade metodológica), o direito, não deixa de opinar, pelo contrário, convalida uma ordem social dividida, afinando-se, religiosamente, aos compromissos ideológicos que representa.

A norma jurídica tutela um patrimônio construído através da luta de classes, acomodando antagonismos que se afirmam numa universalidade ilusória, contida essencialmente na defesa da propriedade. A justiça (se é que é possível o paralelo!) organiza-se em conformidade com a constituição que lhe é dada pelo poder vigente, jamais ultrapassando tais limites. Qualquer tentativa de desvincula-la dessa condição só encontraria terreno no campo da utopia reformista, pois, não há como romper com o seu vínculo de classes fundamental. Sua autonomia não ultrapassaria os limites funcionais da esfera de mediação a que  estaria proposta, fazendo valer não mais que as prerrogativas de um poder de polícia, cerceada pela ordem civil que ainda lhe daria competências. Nada além de um paliativo às tensões, longe de atingir os inveterados privilégios incrustados na forma corporativa e clientelista que a estrutura política burguesa consolida. É um equívoco notável pensar na idéia de catarse sem um projeto político que insurja contra todas as formas de dominação.

As ações isoladas s não coadunam com o espírito de mudança que a participação  e o engajamento exigem. Elas necessitam fundir-se nos movimentos que integram um conjunto de mudanças radicais a serem operadas à partir de uma nova consciência social. O intuito reformador é uma perspectiva que já nasce abortada; mister de uma investida muito mais ousada, envolvendo um esforço integrado de reinvenção  das próprias relações sociais.

A retórica da lei é universal, entretanto, a ordem social a que ela se destina "proteger" cria distinções internas inconciliáveis. O direito não se propõe a solver essa contradição diabólica, ela é o seu alimento, a sua razão de ser. A contumácia por um método de investigação absolutamente imparcial, vestido do rigor absoluto da ciência positiva, ajusta-se a uma conjuntura de amplas disjunções e que somente pereniza o regime de exclusão. E a lei apenas tangencia os fatos, sem contudo, abraçá-los. Se não os compreende na sua essência, naturalmente os interpreta como situações ideais alheias à dinâmica do mundo.

O positivismo há tempos esgotou os seus mananciais. Ele já não mais consegue responder às novas urgências e contradições da sociedade "pós- industrial". Suas leis de ferro obstruíram a aproximação entre o conhecimento científico (e nesse rol inclui-se o direito) e o processo histórico, ao  ignorarem o papel fundamental desempenhado pela luta de classes.

A composição do ensino jurídico exerce um papel decisivo na manutenção desse quadro. Ele responde pelos interesses e vontades das classes sociais que o instituíram, reproduzindo aquilo que deve ser exigido pelas necessidades do sistema de produção. Privilegia a formação profissional especializada supervalorizando o aprendizado técnico, sobretudo conservando a soberba do papel científico como se estivesse acima de posturas ideológicas. É dessa maneira, o estudante, compelido a raciocinar em vias estreitas, e o questionamento, a  visão crítica do conhecimento são posturas rejeitadas como se fossem heresias. Cabe ao educando apenas resignar-se no seu papel de paciente, absorvendo as informações e processando-as em paradigmas que se valem como uma herança imanente. O reflexo desse sistema educador estéril, é a formação de técnicos especializados, mas omissos perante uma ideologia que condena o engajamento político, apropriando-se dos argumentos exatos da ciência. Conhece-se o direito, mas ignora-se a sociedade com a qual este diametralmente relaciona-se. O apelo às práticas de investigação puramente objetivas encerram padrões de análise eternizados em axiomas do racionalismo afastando as possibilidades de questionamento e reduzindo o empreendimento científico a um rol de procedimentos rigidamente definidos nos conteúdos dos códigos e doutrinas. Mais importante que prender-se à lei é ater-se ao estudo dos seus  aspectos constitutivos e sua validade. De nada adianta ser o ourives da técnica sem enxergar o contexto que ela representa.

O direito legitima divergências sociais como se estas fossem inerentes a uma natureza humana. É exatamente ai que reside a grande contradição: sua função reguladora está orientada de cima, ela ratifica o poder numa ordem de classes e estabelece os mecanismos para sua manutenção.

A superação da “pós-modernidade” representa o viés da história atual. É o limiar do aprendizado político das massas e o norte que direciona o trabalho dos especialistas do conhecimento; promover a aproximação da ciência com a realidade social, no sentido daquela ser a expressão mais vigorosa  das potencialidades humanas (em prol de objetivos comuns), livres da sua exclusiva função de perpetuar o sistema produtor de mercadorias.

O esforço na reorientação dos objetivos de uma ciência capaz de transformar o homem numa consciência universal, exige a mediação de um interlocutor em bases filosóficas renovadas, disposto a romper os nexos fundamentais da dominação burguesa. O conceito absenteísta de ciência soa como a mais gritante defesa do "status quo" e intensifica a lógica espúria da acumulação capitalista.

A globalização está propondo a tecnificação irrrestrita da inteligência, convertendo-a em valores mensuráveis pelas estatísticas. A modernização necessita de modelos rígidos que fundamentem os seus propósitos. E o direito não foge dessa marcha, nem que para isso ele precise despojar-se do seu velho humanismo de almanaque; e o faz: pari-passu com os desejos determinantes da “nova ordem mundial”.

O que esperar de meros entendidos em leis  amparados por uma cínica idéia de isenção ideológica, totalmente discrepante de qualquer significado humanista? O academicismo cria obstáculos à independência de abordagem impondo restrições ao debate político. O abandono das fórmulas acabadas é necessário para a consecução de vias alternativas ao conhecimento, convenientes com a dialética social.

A viabilidade de novas propostas dependem da sua inserção frente aos problemas imediatos. Imprescindível, para tanto, a livre compreensão da contingência, para só então ser aplicada uma terapêutica capaz de extirpá-los; do contrário, continuarão vivas velhas construções teóricas fundadas em abstrações do pensamento clássico.

                                                                                             CAETANO PROCOPIO - 4/7/99

12 de mai. de 2015

O COLAPSO DA RAZÃO

                                           Existe uma representação mística do mundo que permeia o sentimento comum. Desde a mais tenra idade somos levados a crer que conceitos como liberdade, propriedade e livre-mercado são ontologicamente inquestionáveis. Tais categorias foram canonizadas pelo discurso inexorável da razão. Contestar a ordem do mundo não passa de uma insensatez. Questionar os valores "universais" do liberalismo é comer da mesma maçã que infortunou Adão. A tolerância divina exige um preço: a omissão.

                                             A violência é o devenir das contradições humanas; seus equívocos e obsessões. Os signatários da modernidade são os mesmos que oprimem, embargam e usam-se da tirania  contra aqueles que buscam um caminho próprio, sem procuradores, mas que por isso mesmo ferem a frágil lógica da dominação. O inferno é aqui, longe de ser o local soturno dos cristãos; está em nós mesmos, nessa angustiante passividade concidadã que o dia-a-dia nos denuncia.

                                             Entregar a responsabilidade pela história a um poder exógeno à inteligência é dissociar os desígnios humanos de sua correspondência material. O mundo é atributo do homem: o conhecimento, a ciência, encarnam uma criação universal como aspiração, mas particular como realidade (são as relações de  poder interferindo nos rumos tomados pela evolução social, atrelando esta a interesses hegemônicos). O destino cabe a todos, e ao mesmo tempo a cada um (como já disse Sartre). Ele não está a nossa frente, esperando-nos, dizendo a razão do ser. Quem irá ditá-lo senão as próprias convicções humanas? Existe outro significado à existência a não ser aquilo que exatamente queremos ser, ou melhor, a tudo aquilo a que nos propomos ser? É a condição humana que dá sentido à existência: o que o senso comum habituou a chamar de destino, mas não é mais que uma projeção da práxis. Encarar no destino um compromisso da história é entendê-lo como uma realidade que se projeta no horizonte. Cabe a nós decidi-lo (e modificá-lo).

                                             As experiências do cotidiano, em si, não encerram um estado de consciência. Só um "agir-refletir" poderá nos conduzir às luzes (muito além às dos iluministas). A práxis exige uma ação engajada, sem casuísmos. A omissão é uma escolha frustada de si, uma fuga, uma negação do ser, que não se reconhece como elemento ativo da história, mas apenas compõe-se passivamente perante esta dissolvendo-se nas características comuns de uma época. A condição humana adquire assim, um significado exterior à própria conduta: uma espécie de representação da vontade divina, justificativa plena de incertezas e incógnitas ininteligíveis pela metafísica. Todos os projetos permanecem à mercê de uma interpretação descomprometida com a materialidade  das ações históricas, e o aprendizado social mantém-se encoberto por um conteúdo ideológico deformador, que impossibilita enxergar as estruturas que nos forjaram. Este não reconhecimento é distorcivo à medida que priva a capacidade auto-cognitiva, deixando-nos à margem de compreendermos as experiências de nossos antepassados (agimos impelidos por forças que desconhecemos) e delimitando-nos como iniciativa presente. Apenas a ação concreta pode decidir sobre os desígnios humanos, obliterando tudo aquilo que intuímos (e absorvemos) como valores incontestes. Renunciar ao engajamento é esconder-se em brumas e renegar a legitimidade da ação; é acatar ao poder daqueles que impõem o arbítrio. E dessa forma, não há avanços na solução dos conflitos, pois, dissimulam-se processos preexistentes reproduzindo vícios do passado. A lucidez encontra-se justamente na ruptura com esse sistema de pré-determinações, quando todas as "verdades" se dissipam frente um novo estado de consciência.  Se não há o  rompimento com as estruturas de poder, toda dinâmica social (por mais ostensiva que possa parecer) é apenas incidental e alegórica, destituída de conteúdo verdadeiramente revolucionário que possa alterar o regime de forças.

                                             A liberdade só pode ser definida em situações concretas (Sartre), mas não de forma a reduzi-la em sua expressão, e sim, aproximando-a de indivíduos engajados e seguros da extensão que possam vir a ter os seus projetos. O conceito burguês de liberdade é vago e incompleto: não vislumbra coisa alguma fora das possibilidades engendradas pelo mercado. A liberdade, aqui, consagra-se na proteção aos direitos individuais e do consumidor como premissas fundamentais para a efetivação da cidadania.

                                             A ruptura com todo e qualquer sistema de poder só será plena se houver a contínua autocrítica. Sem um questionamento permanente de seus postulados ela não passará de mera aparência de mudança, presa ao próprio umbigo. Será revolução enquanto perdurarem as circunstâncias de superação, entretanto, deixará de sê-la se seus elementos acomodarem-se na sua fisiologia. A partir de então, estanca-se o processo revolucionário e o que foi tenso passa a figurar em tom absoluto e incontestável.

                                             O socialismo, como aspiração universal de justiça e igualdade, não morreu. O que sucumbiu foi a sua forma estatal e burocrática, que ao invés de consolidá-lo como alternativa ao capitalismo, acabou rivalizando com este, perpetuando velhas formas de exploração. Cuspir em Marx é um contra-senso desmedido, apenas objeto dos anseios da crítica ortodoxa e presa às cartilhas liberais-positivistas. Suas idéias não foram rechaçadas pelo atual modelo do desenvolvimento capitalista (como tentam justificar os defensores do consenso pela globalização). É a tradição marxista que precisa superar seus equívocos e vilipendiar o dogmatismo que imperou (e emperrou!) em boa parte de suas fileiras.

                                             O século XX promoveu dissensões profundas na sociedade moderna. Suas contradições, de certa forma, enriqueceram a experiência humana. Em contrapartida, deixou aos seus filhos a árdua tarefa do limiar de um mundo mais justo e solidário.



                                             CAETANO PROCÓPIO NEVES - 18/1/99