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30 de abr. de 2021

CAPITALISMO PANDEMICO

 

O capitalismo atingiu no século XX a sua etapa superior, a que Lenin havia previsto quando abordou o que seria a fase imperialista. Os moldes do estado de bem-estar social trouxeram os anos dourados da explosão fordista: maior acesso a bens de consumo, melhores condições de trabalho e salários, mas o idílio de aproximadamente 3 décadas acabou e o final da centúria mostrou-se um período de agonia.

 

O sonho do liberalismo vencedor profetizado por Fukuyama nos anos 1990, principalmente com o fim do socialismo real representado pela queda da URSS, durou pouco. Quando o século XXI se abriu, o foco das tensões e contradições havia deixado o palco da guerra fria para se deslocar no mapa geopolítico ao oriente muçulmano.

 

Iniciada a segunda década do século XXI, a utopia liberal, escorada na reprodução capitalista, agora sob controle do capital financeiro, apresenta um perfil cada vez mais autoritário. O seu alvo principal: as relações de trabalho. A precarização, engendrada na década dos anos 90, avança de forma fulminante em praticamente todo o globo, mas aqui na “periferia do sistema”, num ritmo avassalador intensificado ainda mais pela pandemia da Covid-19.

 

No Brasil, a década de 1980 trouxe a redemocratização, que na oportuna visão do saudoso Florestan Fernandes, a definia como sendo uma “transição transada”. O fim do regime militar apenas criou uma aparência de mudança, que já na década de 1990 começou a dar sinais de que, no fundo, nada havia mudado. A estrutura social brasileira continuou intacta, ou seja, um país que combinou democracia política com ampla desigualdade.

 

Um efetivo processo de desmonte estatal e redução dos direitos trabalhistas (tanto no setor público quanto no privado) se empreendeu durante os governos oriundos da “Nova República”. Mesmo nos anos de Lula e Dilma, o PT manteve incólume este modelo, minimamente abrandado pelo incremento nos programas assistencialistas.

 

Com a queda de Dilma em 2016, Temer, e posteriormente Bolsonaro, aceleram as medidas de diminuição do Estado e acentuaram a “informalização” do trabalho, confirmando aquilo que estudiosos, como Ricardo Antunes, têm denominado “uberização” das atividades, lançando milhões de trabalhadores às mais insidiosas condições de subemprego.

 

E a tragédia brasileira ainda encontrou um novo dínamo: a Covid-19. O flagelo da pandemia potencializou a barbárie nacional. Além das centenas de milhares de mortos até o momento, milhões sobrevivem a duras penas diante de um governo que desdenha da sua população, com os escassos valores de auxílio emergencial, jogada à sorte, seguindo a rotina de trabalho diário nas ruas sem que tenha um mínimo de amparo. Trabalhadores que, impossibilitados de permanecerem em casa, na tentativa de não sucumbirem à miséria, acabam sendo obrigados enfrentar o risco constante de infecção e de morte pelo coronavírus.

 

A resistência às medidas de isolamento social mostra a face perversa do capital, que coloca a vida como um elemento subjacente às necessidades da economia. As mortes pela Covid-19 não são apenas o reflexo da ação virulenta do patógeno, mas principalmente um produto nefasto das próprias relações capitalistas e do seu modo de vida insano.

 

A falácia de que as atividades econômicas não suportam as medidas de “lockdown”, fundamentais para se frear as contaminações, é facilmente desmascarada. Basta imaginarmos as I e II guerras mundiais, quando haviam restrições de locomoção e toda atividade produtiva se voltou aos insumos bélicos, assim como ao estritamente necessário à manutenção das pessoas.

 

Se a produção se reajustou às premências da realidade, por que neste momento em que estamos em confronto com um vírus, a economia não poderia muito bem se reorganizar e até mesmo suprimir atividades? A resposta parece clara, entretanto, a sobrevivência da humanidade não é relevante, tanto quanto a manutenção das taxas de crescimento capazes de garantir a constante circulação de mercadorias para que o capitalismo possa se manter.

 

Apesar de o mundo digital assegurar formas eficazes de consumo não presenciais, ainda assim a sobrevivência do capital necessita que as pessoas permaneçam transitando pelas ruas. E o Brasil bolsonarista da falta de solidariedade é um exemplo exponencial do que foi visto em todo o planeta: a transformação das mortes pela Covid-19 em mera estatística.

 

O título da obra de David Harvey, “A loucura da razão econômica”, é cabal para definir este mundo da “pós-modernidade” e, no fundo, nos orienta a refletirmos que tipo de sociabilidade almejamos: uma legítima centrada nas verdadeiras necessidades humanas ou a forma alienada e fugaz dos nossos consumos diários?

 

Não foi a Covid-19 que promoveu esta profunda crise planetária. O coronavírus apenas fez escancarar a normalidade doentia de um modelo de reprodução social que é em si a real pandemia.

                                                                 

CAETANO PROCOPIO