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22 de mar. de 2024

NOITE CINTILANTE

 bar lotado, conversas, sorrisos, olhares de viés, flertes

 pessoas circulam entre as mesas

 bebidas, pratos transitam de um lado para o outro

 o som do palco percorre o ambiente

 uma alegria extasiante

 a aparente normalidade destoa das manchetes cinzentas dos noticiários

 trazem um mundo aflito

 o que há em cada rosto presente?

 certezas, otimismos em um futuro?

 ou disfarces para inseguranças, angústias?

 o real está além das filigranas diárias

 quando desvenda a alienação mundana e notívaga

 volto-me à procura da realidade enquanto me afasto das luzes

 e dobro a esquina no retorno para casa

                                                                                   CAETANO PROCOPIO

9 de mar. de 2024

O LUGAR VAZIO



 A varanda está vazia

 A mesa de madeira, os bancos e cadeiras, a velha tv presa na parede, todos em um sono profundo

 Mas que outrora regozijaram-se em tantas confraternizações

 Só um suave tilintar se faz ouvir

 Do enfeite metálico pendurado no telhado

 O vento dedilhando as lembranças

 De ausências incontornáveis

 Presentes apenas na memória

 Do tempo que segue seu rumo

 Da vida que remenda seu decurso

                                                                                                                 

CAETANO PROCOPIO

Ilustração: CZ0

https://www.instagram.com/ricardocruz70/


24 de fev. de 2024

A MORTE SOCIAL


Talvez eu possa desaparecer um dia e não necessariamente em razão da minha morte, mas de um profundo recolhimento que poderia caracterizar uma espécie de suicídio social.  Para Durkeim, o ato de ceifar a própria existência é um fenômeno coletivo, na qual as angústias do indivíduo não encontram respostas na vida em comum.
 
Quando observo nosso tempo, enxergo seres cada vez mais solitários e angustiados em uma convivência desarticulada entre as pessoas.  Nossos objetivos não se alinham às ações dos outros, são interrelações que servem a mera satisfação de interesses privados, nada além de representações. Coexistimos em um mero exercício de tolerância e ao menor sinal de ameaça naquilo que possuímos, deixamos o diálogo em segundo plano para salvaguardar os desejos de posse. No cotidiano, as palavras trocadas são superficiais, a aflição alheia não nos interessa. Alguém roto transitando pela rua não passa de um perdedor, fracassado e inábil em aceitar a “saudável” rotina de competição.
 
Tragédias banalizadas pela sensação de normalidade, a insuportável percepção de estar em um mundo despedaçado por uma sociabilidade perversa, incapaz de possibilitar um convívio legítimo e subsidiada na relação com os objetos. Estes acabam adquirindo vontade e transitam levados por nós para que possam seguir livremente enquanto vivemos a “vida” deles. Alienados que estamos, não percebemos o ânimo das coisas.
                                            
Quando nos relacionamos, aparentamos interagir com os outros como se fossemos seres autônomos, mas somente encenamos relações fundamentalmente objetivas. Por mais que nos identifiquemos indivíduos dotados de escolha, agimos na qualidade de simples portadores de algo ao qual objetivamos. Não há contatos que no seu âmago visem um vínculo genuíno. Mesmo na mais tenra idade, em nossas primeiras percepções construímos uma subjetividade para nos tornarmos sequiosos pelas coisas. Uma punição ou reprimenda acaba por reverter na negativa de conseguir algum objeto e quando somos premiados por um comportamento “exemplar” nos é dado um bem.
 
Onde quer que estejamos, primamos pela obtenção de algo que mesmo sendo incorpóreo, é na essência uma mercadoria. Apesar de cercados por elas, este processo escapa de nossa percepção, pois as naturalizamos incondicionalmente de tal forma que as adquirir se torna uma necessidade existencial elementar. Em qualquer instância da vida social, um bem que nos satisfaça será concebível se mediado pelo mercado, seja um alimento, uma consulta medica, estudo (educação), ou um outro serviço, só é possível se convertido em dinheiro.
 
Nossa realidade, vista sob o prisma da história, contém os elementos fundantes da modernidade. O que não está muito claro neste desenvolvimento, são suas contradições. Das revoluções que derrubaram o Antigo Regime às revoluções socialistas que abalaram o sistema do capital imperante, não houve uma transformação completa no modo de vida e reprodução social. As forças que agiram na ebulição e depois na “formatação” do projeto burguês foram as mesmas que conseguiram sufocar suas posteriores contestações e insurgências. Nenhuma revolução no século XX conseguiu ir além das questões inerentes aos próprios nacionalismos que as engendraram.
 
A queda do Muro de Berlim e o fim da URSS são simbolicamente os acontecimentos paradigmáticos e ensejadores desta “nova ordem” globalizada, conduzida pelo estandarte da democracia liberal “vitoriosa”. Mas o capitalismo “vencedor” não superou seu antípoda (socialismo), pois este jamais se mostrou um processo historicamente consolidado. O “atual” mundo pós-moderno é falso pois se configura uma construção ideológica que mascara as impossibilidades da contemporaneidade burguesa em sua crise sistêmica e incapaz de construir uma perspectiva inclusiva que acolha indistintamente a humanidade. Em todas suas nuances, um arsenal de discursos (narrativas) e interpretações alienantes.
 
Os anos recentes revelaram um agravamento das tensões materializadas nas constantes crises (econômicas, sociais, políticas, bélicas, pandêmicas, climática), cada vez mais intensas e entrelaçadas. Em que pesem aparentarem fenômenos distintos, são manifestações decorrentes das incompatibilidades do modelo de organização social vigente, em confronto com as condições propícias à vida no planeta e que sinalizam um horizonte nada alentador, apesar de cotidianamente ignorado.  
 
O fortalecimento dos movimentos de ultradireita em escala global não apenas encontra terreno fértil na falta de uma resistência mobilizada e verdadeiramente antissistêmica, mas funciona como um eficiente mecanismo de mistificação do real em que o apelo à defesa absoluta dos valores individuais se torna o baluarte de uma convivência mórbida. Tempos de individualismos extremos em sociedades com relações pouco coesas entre as pessoas é um cenário fértil para o avanço da violência.
 
As ilusões da última década do século XX foram desfeitas pelos fatos. A história não terminou e o fim do famigerado regime do leste europeu não representou o florescer de uma era de paz e prosperidade. O que vimos depois foi o esfacelamento das esperanças de que assistiríamos o surgimento de uma “aldeia global”. Ao invés, caminhamos a passos largos para um futuro muito mais incerto, conflituoso e, acima de tudo, perigoso.
 

Enfim, eis os dilemas que em certos momentos remetem minha imaginação à figura de um eremita, como uma ilusão desesperada diante da inviabilidade de um mundo que talvez seja impossível e a cada dia se mostra ainda mais hostil.


 CAETANO PROCOPIO

 Ilustração: CZ0