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22 de dez. de 2022

A RAZÃO EM CÓLERA

 Creio ter utilizado o termo bolsonarismo pela primeira vez  nos primórdios da campanha eleitoral em 2018. Passados mais de 4 anos desde então, o “governo” Bolsonaro nos deixa como legado não apenas o rastro de destruição, mas a completa putrefação da República e suas instituições.

                                                        

https://www.instagram.com/ricardocruz70/
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Não foi o “bolsonarismo” quem produziu esta necrose, ele somente a explicitou, de certa maneira, exumou elementos presentes em nossa formação histórica que remontam às velhas relações do passado senhorial, caracterizadas por uma composição de classes assentada no autoritarismo e na violência explícita contra as camadas populares, primeiro os indígenas e escravos, depois,  reordenada na ação do Estado através do controle policial e opressão dos trabalhadores. Do escravismo aos “modernos uberes” jamais vimos rompida a condição do trabalho super-explorado. “Nossas” elites sempre estiveram associadas ao capital externo como forma de garantir e perpetuar as esferas de dominação. Concordaram com a inserção subalterna do país na economia mundial, definiram e aperfeiçoaram seu “ethos” predatório.

 

O fenômeno bolsonarista, se é que podemos assim chamá-lo, possui peculiaridades que refletem aspectos do nosso desenvolvimento nacional, mas também se conecta à nova onda conservadora global, reflexo da profunda crise do capitalismo em sua fase “neoliberal/pós-moderna”.  Esta “nova extrema-direita”, aqui no Brasil, se inspira em velhos lemas nazi-fascistas que não diferem daqueles deflagrados em outros movimentos importantes da história do país, como no Estado Novo (principalmente com o integralismo) e no golpe de 1964: a defesa da familia, da propriedade, da liberdade individual e o combate à ameaça comunista.

 

Mas o que essencialmente caracteriza estes “ressurgimentos” em escala planetária, apesar das peculiaridades locais, é que reproduzem os discursos contra minorias, estrangeiros, refugiados, impingindo a tais grupos a responsabilidade pela crise economica, a falta de emprego ou mesmo a redução de salários e do padrão de vida médio nos respectivos países. Criam-se inimigos e os associam às suas contendas mascarando as reais contradições nas relações de produção capitalistas. Desviam a atenção acerca da centralidade do problema, identificada nas divergências inconciliáveis entre capital-trabalho, que dissolvidas no processo de reestruturação produtiva, ampararam a crescente precarização das atividades laborais em marcha principalmente à partir da década de 1990. Atacam aqueles elementos que não são os verdadeiros agentes da disputa para exatamente escamotear a realidade, uma vez que hoje, o grande óbice à expansão do lucro, é o aparato estatal-protetor dos direitos trabalhistas, resquício do apogeu social-democrata que o capitalismo, à partir das últimas décadas do século XX, busca superar.

 

Em um período de profunda diluição ideológica das correntes de esquerda, a guinada conservadora não encontra resistência na defesa da emancipação do “mundo do trabalho”, ao contrario,  ja que os principais partidos comunistas ocidentais abdicaram da luta revolucionária desde o controle stalinista da terceira internacional, na qual prevaleceu a tese do “socialismo em um só país”.  O que acabou por repercutir foi a perspectiva reformista “kautsky-bernsteiniana” que levou à consolidação do “walfare state”, com a defesa institucional da democracia. Mas em um momento de refluxo da social-democracia, o desvio programático caminhou solenemente para as práticas neoliberais. Assim foram os governos do PT, que se no plano economico encheriam de orgulho tanto a Hayek quanto a Friedmann,  no discurso político capturaram as pautas ligadas aos movimentos identitários e de defesa retórica da inclusão social.

 

O viés de todo este processo começou a se tornar explícito no segundo governo Dilma, quando a forte recessão econômica (a crise de 2008 não foi uma “marolinha”!) contribuiu para a instabilidade política que redundou na  derrocada petista com o impeachment presidencial e a prisão de Lula pela operação lava-jato. Neste momento ja se delineava o crescimento dos movimentos conservadores que ajudaram viabilizar a eleição de Bolsonaro em 2018. Abriu-se a contraposição daqueles temas, em tese afinados ao discurso da “direita”, com o apego ao identitarismo patrocinado pelos partidos de “esquerda”. Apesar da importancia e da necessidade de enfretamento destas questões, tais discussões precisariam integrar um movimento muito mais amplo, capitaneado pela organização dos trabalhadores em luta constante contra a exploração e a superação do capitalismo. Enquanto a institucionalidade (parlamento, judiciario, executivo) atua no sentido de avançar medidas que viabilizem a desregulamentação das relações de trabalho assegurando os lucros do capital, a esquerda democrática se furta deste confronto e enfatiza a defesa identitária polarizada com as pautas de costumes apoiadas pelos setores mais reacionários.

 

Este descolamento do campo da ação além de oportuno também nivela ambos espectros da disputa política no campo eleitoral. O poder dos grandes grupos econômicos encontra-se garantido tanto com Lula quanto com Bolsonaro, claro, sem deixar de mostrar toda sua satisfação com a enorme funcionalidade do segundo, que elevou as denúncias de  corrupção a um patamar superlativo e amplamente visceral, inclusive atingindo os setores militares, até então vistos como impolutos e incólumes de malfadas práticas administrativas. Portanto, a vitória petista pode até aparentar uma guinada política, ou mesmo um aparente triunfo civilizatório, entretanto, dentro dos marcos experimentados, com os amplos acordos realizados, caminha mais para uma solução de continuidade nos limites que caracterizaram a “Nova República”, suprimindo-se apenas os delírios ideológicos e as manifestações coléricas que parte do entorno bolsonarista explicitou. Uma correção no rumo, ja que os resultados da experiência golpista de 2016, apesar de salutar aos setores hegônicos, também acabou por se mostrar um pouco indigesta para a normalidade dos negócios.

 

O Brasil, nos últimos 4 anos, desnudou as profundas contradições de sua “tragetória civilizatória” e expôs o caráter deletério de suas “relações constitutivas”. O grito da transformação, se vier, não será da escolha eleitoral. Precisa ecoar das ruas e encontrar ouvidos dispostos a enfrentar todo um passado de exclusão, indo além da racionalidade cartesiana para compreender as reais causas da nossa miséria: o trabalho e seus grilhões! Fundamental libertá-lo, mas para isso, o papel precípuo das esquerdas é de reorganizá-lo e guiá-lo na construção coletiva de uma realidade na qual não mais existam diferenças de classes, apenas humanas!

                                                                                                                                                                                                                                     CAETANO PROCOPIO