O capitalismo atingiu no século XX a sua etapa
superior, a que Lenin havia previsto quando abordou o que seria a fase
imperialista. Os moldes do estado de bem-estar social trouxeram os anos
dourados da explosão fordista: maior acesso a bens de consumo, melhores
condições de trabalho e salários, mas o idílio de aproximadamente 3 décadas
acabou e o final da centúria mostrou-se um período de agonia.
O sonho do liberalismo vencedor profetizado por
Fukuyama nos anos 1990, principalmente com o fim do socialismo real
representado pela queda da URSS, durou pouco. Quando o século XXI se abriu, o
foco das tensões e contradições havia deixado o palco da guerra fria para se
deslocar no mapa geopolítico ao oriente muçulmano.
Iniciada a segunda década do século XXI, a utopia
liberal, escorada na reprodução capitalista, agora sob controle do capital
financeiro, apresenta um perfil cada vez mais autoritário. O seu alvo
principal: as relações de trabalho. A precarização, engendrada na década dos anos
90, avança de forma fulminante em praticamente todo o globo, mas aqui na
“periferia do sistema”, num ritmo avassalador intensificado ainda mais pela
pandemia da Covid-19.
No Brasil, a década de 1980 trouxe a redemocratização,
que na oportuna visão do saudoso Florestan Fernandes, a definia como sendo uma
“transição transada”. O fim do regime militar apenas criou uma aparência de
mudança, que já na década de 1990 começou a dar sinais de que, no fundo, nada
havia mudado. A estrutura social brasileira continuou intacta, ou seja, um país
que combinou democracia política com ampla desigualdade.
Um efetivo processo de desmonte estatal e redução dos
direitos trabalhistas (tanto no setor público quanto no privado) se empreendeu
durante os governos oriundos da “Nova República”. Mesmo nos anos de Lula e
Dilma, o PT manteve incólume este modelo, minimamente abrandado pelo incremento
nos programas assistencialistas.
Com a queda de Dilma em 2016, Temer, e posteriormente
Bolsonaro, aceleram as medidas de diminuição do Estado e acentuaram a
“informalização” do trabalho, confirmando aquilo que estudiosos, como Ricardo
Antunes, têm denominado “uberização” das atividades, lançando milhões de
trabalhadores às mais insidiosas condições de subemprego.
E a tragédia brasileira ainda encontrou um novo
dínamo: a Covid-19. O flagelo da pandemia potencializou a barbárie nacional.
Além das centenas de milhares de mortos até o momento, milhões sobrevivem a
duras penas diante de um governo que desdenha da sua população, com os escassos
valores de auxílio emergencial, jogada à sorte, seguindo a rotina de trabalho
diário nas ruas sem que tenha um mínimo de amparo. Trabalhadores que,
impossibilitados de permanecerem em casa, na tentativa de não sucumbirem à
miséria, acabam sendo obrigados enfrentar o risco constante de infecção e de
morte pelo coronavírus.
A resistência às medidas de isolamento social mostra a
face perversa do capital, que coloca a vida como um elemento subjacente às
necessidades da economia. As mortes pela Covid-19 não são apenas o reflexo da
ação virulenta do patógeno, mas principalmente um produto nefasto das próprias
relações capitalistas e do seu modo de vida insano.
A falácia de que as atividades econômicas não suportam
as medidas de “lockdown”, fundamentais para se frear as contaminações, é
facilmente desmascarada. Basta imaginarmos as I e II guerras mundiais, quando
haviam restrições de locomoção e toda atividade produtiva se voltou aos insumos
bélicos, assim como ao estritamente necessário à manutenção das pessoas.
Se a produção se reajustou às premências da realidade,
por que neste momento em que estamos em confronto com um vírus, a economia não
poderia muito bem se reorganizar e até mesmo suprimir atividades? A resposta
parece clara, entretanto, a sobrevivência da humanidade não é relevante, tanto
quanto a manutenção das taxas de crescimento capazes de garantir a constante
circulação de mercadorias para que o capitalismo possa se manter.
Apesar de o mundo digital assegurar formas eficazes de
consumo não presenciais, ainda assim a sobrevivência do capital necessita que
as pessoas permaneçam transitando pelas ruas. E o Brasil bolsonarista da falta
de solidariedade é um exemplo exponencial do que foi visto em todo o planeta: a
transformação das mortes pela Covid-19 em mera estatística.
O título da obra de David Harvey, “A loucura da razão
econômica”, é cabal para definir este mundo da “pós-modernidade” e, no fundo,
nos orienta a refletirmos que tipo de sociabilidade almejamos: uma legítima
centrada nas verdadeiras necessidades humanas ou a forma alienada e fugaz dos
nossos consumos diários?
Não foi a Covid-19 que promoveu esta profunda crise
planetária. O coronavírus apenas fez escancarar a normalidade doentia de um
modelo de reprodução social que é em si a real pandemia.
CAETANO PROCOPIO