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22 de mar. de 2024

NOITE CINTILANTE

 bar lotado, conversas, sorrisos, olhares de viés, flertes

 pessoas circulam entre as mesas

 bebidas, pratos transitam de um lado para o outro

 o som do palco percorre o ambiente

 uma alegria extasiante

 a aparente normalidade destoa das manchetes cinzentas dos noticiários

 trazem um mundo aflito

 o que há em cada rosto presente?

 certezas, otimismos em um futuro?

 ou disfarces para inseguranças, angústias?

 o real está além das filigranas diárias

 quando desvenda a alienação mundana e notívaga

 volto-me à procura da realidade enquanto me afasto das luzes

 e dobro a esquina no retorno para casa

                                                                                   CAETANO PROCOPIO

9 de mar. de 2024

O LUGAR VAZIO



 A varanda está vazia

 A mesa de madeira, os bancos e cadeiras, a velha tv presa na parede, todos em um sono profundo

 Mas que outrora regozijaram-se em tantas confraternizações

 Só um suave tilintar se faz ouvir

 Do enfeite metálico pendurado no telhado

 O vento dedilhando as lembranças

 De ausências incontornáveis

 Presentes apenas na memória

 Do tempo que segue seu rumo

 Da vida que remenda seu decurso

                                                                                                                 

CAETANO PROCOPIO

Ilustração: CZ0

https://www.instagram.com/ricardocruz70/


24 de fev. de 2024

A MORTE SOCIAL


Talvez eu possa desaparecer um dia e não necessariamente em razão da minha morte, mas de um profundo recolhimento que poderia caracterizar uma espécie de suicídio social.  Para Durkeim, o ato de ceifar a própria existência é um fenômeno coletivo, na qual as angústias do indivíduo não encontram respostas na vida em comum.
 
Quando observo nosso tempo, enxergo seres cada vez mais solitários e angustiados em uma convivência desarticulada entre as pessoas.  Nossos objetivos não se alinham às ações dos outros, são interrelações que servem a mera satisfação de interesses privados, nada além de representações. Coexistimos em um mero exercício de tolerância e ao menor sinal de ameaça naquilo que possuímos, deixamos o diálogo em segundo plano para salvaguardar os desejos de posse. No cotidiano, as palavras trocadas são superficiais, a aflição alheia não nos interessa. Alguém roto transitando pela rua não passa de um perdedor, fracassado e inábil em aceitar a “saudável” rotina de competição.
 
Tragédias banalizadas pela sensação de normalidade, a insuportável percepção de estar em um mundo despedaçado por uma sociabilidade perversa, incapaz de possibilitar um convívio legítimo e subsidiada na relação com os objetos. Estes acabam adquirindo vontade e transitam levados por nós para que possam seguir livremente enquanto vivemos a “vida” deles. Alienados que estamos, não percebemos o ânimo das coisas.
                                            
Quando nos relacionamos, aparentamos interagir com os outros como se fossemos seres autônomos, mas somente encenamos relações fundamentalmente objetivas. Por mais que nos identifiquemos indivíduos dotados de escolha, agimos na qualidade de simples portadores de algo ao qual objetivamos. Não há contatos que no seu âmago visem um vínculo genuíno. Mesmo na mais tenra idade, em nossas primeiras percepções construímos uma subjetividade para nos tornarmos sequiosos pelas coisas. Uma punição ou reprimenda acaba por reverter na negativa de conseguir algum objeto e quando somos premiados por um comportamento “exemplar” nos é dado um bem.
 
Onde quer que estejamos, primamos pela obtenção de algo que mesmo sendo incorpóreo, é na essência uma mercadoria. Apesar de cercados por elas, este processo escapa de nossa percepção, pois as naturalizamos incondicionalmente de tal forma que as adquirir se torna uma necessidade existencial elementar. Em qualquer instância da vida social, um bem que nos satisfaça será concebível se mediado pelo mercado, seja um alimento, uma consulta medica, estudo (educação), ou um outro serviço, só é possível se convertido em dinheiro.
 
Nossa realidade, vista sob o prisma da história, contém os elementos fundantes da modernidade. O que não está muito claro neste desenvolvimento, são suas contradições. Das revoluções que derrubaram o Antigo Regime às revoluções socialistas que abalaram o sistema do capital imperante, não houve uma transformação completa no modo de vida e reprodução social. As forças que agiram na ebulição e depois na “formatação” do projeto burguês foram as mesmas que conseguiram sufocar suas posteriores contestações e insurgências. Nenhuma revolução no século XX conseguiu ir além das questões inerentes aos próprios nacionalismos que as engendraram.
 
A queda do Muro de Berlim e o fim da URSS são simbolicamente os acontecimentos paradigmáticos e ensejadores desta “nova ordem” globalizada, conduzida pelo estandarte da democracia liberal “vitoriosa”. Mas o capitalismo “vencedor” não superou seu antípoda (socialismo), pois este jamais se mostrou um processo historicamente consolidado. O “atual” mundo pós-moderno é falso pois se configura uma construção ideológica que mascara as impossibilidades da contemporaneidade burguesa em sua crise sistêmica e incapaz de construir uma perspectiva inclusiva que acolha indistintamente a humanidade. Em todas suas nuances, um arsenal de discursos (narrativas) e interpretações alienantes.
 
Os anos recentes revelaram um agravamento das tensões materializadas nas constantes crises (econômicas, sociais, políticas, bélicas, pandêmicas, climática), cada vez mais intensas e entrelaçadas. Em que pesem aparentarem fenômenos distintos, são manifestações decorrentes das incompatibilidades do modelo de organização social vigente, em confronto com as condições propícias à vida no planeta e que sinalizam um horizonte nada alentador, apesar de cotidianamente ignorado.  
 
O fortalecimento dos movimentos de ultradireita em escala global não apenas encontra terreno fértil na falta de uma resistência mobilizada e verdadeiramente antissistêmica, mas funciona como um eficiente mecanismo de mistificação do real em que o apelo à defesa absoluta dos valores individuais se torna o baluarte de uma convivência mórbida. Tempos de individualismos extremos em sociedades com relações pouco coesas entre as pessoas é um cenário fértil para o avanço da violência.
 
As ilusões da última década do século XX foram desfeitas pelos fatos. A história não terminou e o fim do famigerado regime do leste europeu não representou o florescer de uma era de paz e prosperidade. O que vimos depois foi o esfacelamento das esperanças de que assistiríamos o surgimento de uma “aldeia global”. Ao invés, caminhamos a passos largos para um futuro muito mais incerto, conflituoso e, acima de tudo, perigoso.
 

Enfim, eis os dilemas que em certos momentos remetem minha imaginação à figura de um eremita, como uma ilusão desesperada diante da inviabilidade de um mundo que talvez seja impossível e a cada dia se mostra ainda mais hostil.


 CAETANO PROCOPIO

 Ilustração: CZ0

24 de out. de 2023

UMA LUTA FRATRICIDA

             A convivência entre judeus e palestinos nem sempre foi marcada por conflitos. Mais do que um problema com raízes religiosas, as tensões entre os dois povos é um fenômeno relativamente recente, com origem nas conturbadas relações políticas do século XX.

 

Depois da dispersão promovida pelos romanos no Século II, comunidades judaicas, que acabaram sob domínio árabe devido à expansão do islamismo a partir do século VII, eram toleradas pelo regime dos califas. A guerra santa propunha uma conquista pela fé sem que os dominados fossem massacrados, como ocorreu durante as cruzadas, pelas forças dos exércitos cristãos.

 

A semente da discórdia foi plantada com o início do movimento sionista entre os séculos XIX e XX. O retorno dos judeus à palestina passou a ser visto pelos árabes como uma ameaça quando os propósitos das nações hegemônicas do ocidente (EUA, França, Inglaterra) começaram a prevalecer na constituição de um estado judeu. Com o final da 1ª Guerra Mundial, o Oriente Médio se viu livre do controle turco passando a ser administrado pela França e pela Inglaterra. A mal sucedida experiência britânica no controle da palestina acabou sendo “compensada” com a criação de Israel, que se viabilizou como uma espécie de farol da política estadunidense na região.

 

A proposta da ONU de divisão da palestina em dois estados, um judeu e outro palestino, nunca se efetivou. Em 1948, Israel surgiu como nação, consolidando-se com o decisivo apoio dos norte-americanos. Os palestinos eram a maioria que habitava o território, mas com as migrações em massa de judeus principalmente fugidos da Europa devido as perseguições, muitos acabaram expulsos de suas terras para países vizinhos e os que permaneceram se transformaram em refugiados dentro de sua própria casa.

 

Não se deve confundir a aspiração judaica que almejava o retorno à “terra prometida” (conforme tradição de antiga crença hebraica) após séculos de diáspora, com a doutrina sionista de construção de um país amparado por uma concepção nacionalista e militar, excludente dos palestinos. A estes, reduzidos à condição de párias, não há qualquer perspectiva e a violência brutal contra sua população explorada, fomenta o ódio que impele grupos armados como o Hamas a agirem também de forma sanguinária. Ao mesmo tempo, essa lógica macabra retroalimenta o discurso justificador da dominação israelense, fortalecendo grupos políticos ultraconservadores ainda que, representados pelo bastante desgastado primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

 

O ataque desferido pelo Hamas é apenas mais um capítulo nesta longa batalha que dura mais de sete décadas. Agora, Israel volta todas suas armas contra a população palestina sob o pretexto do combate ao terrorismo, mas o que de fato a história revela é a completa incúria acerca da real situação dos palestinos, absolutamente excluídos desde o plano divisor proposto pela ONU. Após o nascimento de Israel a ocupação acabou tacitamente aceita pela comunidade internacional. Jamais foram tomadas medidas concretas para garantir a autonomia territorial palestina, nem mesmo a adoção de represálias contra os massacres israelenses a eles impostos.

 

Neste momento, a escalada do conflito não permite que o passado longínquo de convívio possa novamente ser resgatado. Imprescindível que Israel cesse as ações militares e desocupe os territórios pondo fim ao horror, entretanto, não é esta a perspectiva que se delineia no horizonte. Além da apatia global em condenar as ações israelenses, os EUA e as principais nações europeias declararam apoio a Israel. Os governos estadunidenses sempre se valeram da incondicional defesa dos israelenses, tendo-os como fortes aliados de suas políticas intervencionistas na região.

 

Enquanto as ações de Estado estiverem decidindo o destino das populações envolvidas seguirá o banho de sangue, principalmente palestino. Não há como falar em uma paz verdadeira para todos. Esta só será viável quando figuras como Joe Biden e Benjamin Netanyahu fizerem parte da história que um dia o mundo deverá apagar.

 

 

                                                                  CAETANO PROCOPIO

1 de out. de 2023

FEITIÇO


 Celular, carro ou outro objeto qualquer

 O deleite em adquiri-los, satisfação que logo se sacia

 A ânsia de obter sempre mais, desejo incontrolável

Viver para consumir e não o contrário

 É o movimento incessante das coisas que nos conduz

 Alimenta ansiedade, frustração

 Tomados pela lógica concorrencial somos individualistas, egoístas e competidores

 Ao invés de genéricos, comunitários e solidários

 O triunfo do mercado com seu discurso totalizante, totalitário

 Que dissimula suas mazelas como se fossem alheias às próprias determinações

A ciência, limitada pela realidade de classes, sujeita-se a estas contradições

 Iludida com a cantilena do “fim da história”

 Seduzida pelo feitiço das mercadorias

 

 

CAETANO PROCOPIO

1 de set. de 2023

MUNDO EM TRANSE

 Um planeta em tensão permanente

 Crises social, política, econômica, bélica, climática

 Conflitos que irrompem de um modo de vida desenfreado

 Urdido pelo movimento alienado do mundo

 Vivemos compelidos por este transe

 Sem a compreensão de “si”

 Sem saber o destino

 É o ritmo que nos impele e, displicentemente, o aceitamos

 Mais cômodo segui-lo, deixa-lo fluir

 Ausentarmo-nos das consequências

 E justificarmo-nos como consciências ocas

 De uma existência pueril e que remete à tragédia

 No fundo, somos uma paráfrase sartriana:

 meio vítimas, meio cúmplices

CAETANO PROCOPIO

6 de jul. de 2023

A CASA DOS ECOS

 No habitat solitário, o silêncio perdura

Alguns sons interrompem seu transcurso

O espaço, as paredes, nas surdas respostas, denunciam o vazio

Uma casa ausente nem mais serve às lembranças

Seus cômodos vagos estão imersos no esquecimento

Parecem dizer: é preciso partir!

Buscar um novo lugar e seguir os dias

Para poder recordar o que foi vivido

E viver o que for preciso.

CAETANO PROCOPIO                                                  



25 de jun. de 2023

A LÓGICA DA RAZÃO INSANA

 

Quando o liberalismo econômico se utilizou dos conceitos de John Locke para fundamentar as relações de reprodução da vida material, havia um sentido norteador. Smith e Ricardo tinham nos direitos naturais uma pedra angular justificadora do mundo que se avizinhava.

 

Este novo universo trazia uma fabulosa transformação no modo de vida das pessoas que poderia superar todo passado sombrio de escassez e privações. As lutas incessantes e vitoriosas pela obtenção da riqueza já não mais se concentravam nos poucos nababos com brasões, relegando a massa à dominação e mera sobrevivência. Agora, os indivíduos não tinham mais seus destinos orientados por uma revelação divina e o mais comum dos mortais também estaria apto para concorrer à fortuna e à acumulação.

 

Adam Smith acreditava que esta nova perspectiva individual e concorrencial traria prosperidade. Uma dinâmica revolucionária que acabaria por atingir a todos. A humanidade nascente apreendia a si e superava as “trevas” através do livre jogo do mercado. Um outro horizonte se abria com amplas possibilidades a todos, um progresso jamais visto inevitavelmente levaria os “homens” a outro patamar de desenvolvimento. A produção de bens não estava mais limitada às vicissitudes da natureza e novas necessidades surgiram.

 

As mudanças em marcha inspiraram um otimismo e uma fé absoluta no conhecimento. A verdade revelada pela ciência e a história condenaria os homens ao perpétuo avanço, o destino enfim seguiria a luz da civilização. Entretanto, tal sorte se mostrou real apenas para uma parcela dos viventes, já que à margem desta explosão havia os infortunados que expropriados dos negócios, somente tinham a oferecer sua força de trabalho. A estes, os ventos não soprariam favoravelmente e a vida não lhes reservaria grandes conquistas. Mas muito pior, ao sul do globo, onde o espírito empreendedor não se deu sob auspícios do iluminismo e sim com o estampido das armas e o uso corriqueiro da violência. O domínio colonial explicitou todas as contradições de uma universalidade que só se realizaria no discurso teórico, na prática seriam reproduzidas e intensificadas formas de exploração anteriores. A realidade não deixou de refletir os anseios de uma classe social que define seus paradigmas, sua hegemonia e molda os parâmetros da sociabilidade segundo suas aspirações e objetivos.

 

Neste sentido, a lógica imperante é a da mercadoria porque através dela que se da a finalidade deste processo: o lucro! A dicotomia da reprodução capitalista se materializa em um enorme dinamismo na produção de bens ao mesmo tempo que a utilização não se dá de forma igualitária, exatamente pelo seu funcionamento paradoxal exigir uma intensa circulação das mercadorias mas também a necessidade de extração de valor do trabalho para produzi-las, ou seja, quem produz não se beneficia do que produz e a desigualdade jamais deixou de existir no plano real mas mistificada pela identificação ideológica dos direitos naturais consagrados na sociedade civil moderna. A democracia, assim, se torna uma espécie de  altar da contemporaneidade, onde seus termos estão afastados de qualquer questionamento concreto, definidos formalmente em diplomas legais garantidos como normas jurídicas comuns, regularizam a convivência entre os cidadãos, mesmo que estes tenham profundas diferenças materiais. A abundância e opulência de poucos se normalizam frente a carência de muitos, como sendo algo natural que se estrutura nas relações.

 

Desta forma, perde-se o sentido ético do convívio uma vez que todo sistema produtivo não se dá em razão das reais necessidades humanas, mas sim como elemento de valorização do capital, o verdadeiro processo controlador da objetividade e definidor da subjetividade. Tomemos aqui um exemplo singelo para ilustrar a questão: imaginemos o consumo de ovos. Desnecessário discorrer sobre sua utilidade, por ser um alimento  consumido até mesmo em escala mundial. A considerar que existam amplas regiões do globo onde ainda haja fome, por qual razão um produtor deste insumo deixaria de fazê-lo devido ao encerramento de suas atividades por ter atingido a situação de falência? Pelo fato de não ser o seu valor de uso (necessidade) essencial para sua produção, mas sim o seu valor de troca (mercado). Por mais que exista a premência por determinado produto, se uma empresa não conseguir eficiência negocial para auferir lucro, seu destino é a extinção! É este o significado fundamental que irá definir sobre a viabilidade ou não de um determinado bem continuar ser produzido.

 

Portanto, desmascarado um dos mitos dos apologistas do mercado, pois a  eficiência deste apenas ocorre quando a alocação de recursos se faz urgente para garantir primeiramente a acumulação e os desejos do “pobre” consumidor acabam se convertendo em mero elemento participativo do processo, mas o estímulo ao individualismo hedonista é imprescindível naquilo que garanta a permanente circulação das mercadorias. A volúpia consumista se torna imperativa para garantir a sobrevivência deste sistema.  Assim, uma civilização que apesar da produção da abundância convive com a profunda escassez de parcelas da população global está fadada a agonizar e a se barbarizar. Sua ética irrefutável é a da competição, que impede a convivência genuinamente solidária e exige a primazia da vida privada na qual as questões individuais/familiares se tornam soberanas, ou seja, o patrimônio ocupa o centro de toda dinâmica pessoal e o contato com os outros acaba se revelando apenas um detalhe dentro deste vórtice.

 

O único mundo possível que se vislumbra é o de crises intermináveis (sociais, econômicas, climáticas, sanitárias etc) mas que nas suas gêneses possuem um dínamo comum: o modo de reprodução social do capitalismo. Sua superação está na ordem do dia como alternativa de sobrevivência da própria humanidade, já que todas as instabilidades vividas possuem, no seu âmago, suas determinações e não há espaço onde reine equilíbrio ou paz duradouras, mas tensões e conflitos promovidos pelo seu movimento permanente de expansão. A finitude do mundo contrasta com a necessidade do contínuo crescimento, na busca incessante por recursos naturais exploráveis que irão despejar uma infindável quantidade de produtos no mercado, mas que nunca servirão para garantir o bem viver de todos.

 

Esta realidade é, na sua essência, alienada porque definida por um movimento que escapa dos propósitos humanos e, por isso, independe destas determinações. Não há panorama, dentro da esfera das relações vigentes, que possa transformá-las, suas orientações aceitam unicamente a convivência privada e o espírito competitivo, ao arrepio da igualdade material entre as pessoas, imperativa para que as individualidades floresçam substantivamente.

 

O desenvolvimento capitalista permitiu a emancipação da humanidade que se viu livre do pleno jugo à natureza, ao mesmo tempo que revolucionou a produção de bens em escala jamais vista na história, também germinou contradições insolúveis por sua reprodução ter como fundamento, a própria autovalorização. Não há como corrigi-lo porque esta sua lógica mais elementar. A única possibilidade é superá-lo para juntamente com ele sepultar este modo de vida insano.  

CAETANO PROCOPIO

20 de jan. de 2023

PRIMAVERA TARDIA

As flores amarelas que sempre surgiam em setembro

Brotaram no inusitado dezembro

Junto com um inverno intempestivo

Chuva, frio, vento, ao invés do sol e do calor abrasadores

A natureza parece aturdida com tempos tão tenebrosos

O estranhamento das estações coincide com a convergência de convicções

Dias de delírio defronte quartéis

Transformados em templos patrióticos

Onde devotos se aglutinaram em louvores (entre hinos e orações) por intervenção

Não houve a Revelação pela farda

A turba terminou sem o “capitão”

E a horda profanando, destruindo

A rebelião sem razão

Hoje se o clima não encontra mais seu sentido

Menos ainda nossos patrícios

  

CAETANO PROCOPIO

22 de dez. de 2022

A RAZÃO EM CÓLERA

 Creio ter utilizado o termo bolsonarismo pela primeira vez  nos primórdios da campanha eleitoral em 2018. Passados mais de 4 anos desde então, o “governo” Bolsonaro nos deixa como legado não apenas o rastro de destruição, mas a completa putrefação da República e suas instituições.

                                                        

https://www.instagram.com/ricardocruz70/
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Não foi o “bolsonarismo” quem produziu esta necrose, ele somente a explicitou, de certa maneira, exumou elementos presentes em nossa formação histórica que remontam às velhas relações do passado senhorial, caracterizadas por uma composição de classes assentada no autoritarismo e na violência explícita contra as camadas populares, primeiro os indígenas e escravos, depois,  reordenada na ação do Estado através do controle policial e opressão dos trabalhadores. Do escravismo aos “modernos uberes” jamais vimos rompida a condição do trabalho super-explorado. “Nossas” elites sempre estiveram associadas ao capital externo como forma de garantir e perpetuar as esferas de dominação. Concordaram com a inserção subalterna do país na economia mundial, definiram e aperfeiçoaram seu “ethos” predatório.

 

O fenômeno bolsonarista, se é que podemos assim chamá-lo, possui peculiaridades que refletem aspectos do nosso desenvolvimento nacional, mas também se conecta à nova onda conservadora global, reflexo da profunda crise do capitalismo em sua fase “neoliberal/pós-moderna”.  Esta “nova extrema-direita”, aqui no Brasil, se inspira em velhos lemas nazi-fascistas que não diferem daqueles deflagrados em outros movimentos importantes da história do país, como no Estado Novo (principalmente com o integralismo) e no golpe de 1964: a defesa da familia, da propriedade, da liberdade individual e o combate à ameaça comunista.

 

Mas o que essencialmente caracteriza estes “ressurgimentos” em escala planetária, apesar das peculiaridades locais, é que reproduzem os discursos contra minorias, estrangeiros, refugiados, impingindo a tais grupos a responsabilidade pela crise economica, a falta de emprego ou mesmo a redução de salários e do padrão de vida médio nos respectivos países. Criam-se inimigos e os associam às suas contendas mascarando as reais contradições nas relações de produção capitalistas. Desviam a atenção acerca da centralidade do problema, identificada nas divergências inconciliáveis entre capital-trabalho, que dissolvidas no processo de reestruturação produtiva, ampararam a crescente precarização das atividades laborais em marcha principalmente à partir da década de 1990. Atacam aqueles elementos que não são os verdadeiros agentes da disputa para exatamente escamotear a realidade, uma vez que hoje, o grande óbice à expansão do lucro, é o aparato estatal-protetor dos direitos trabalhistas, resquício do apogeu social-democrata que o capitalismo, à partir das últimas décadas do século XX, busca superar.

 

Em um período de profunda diluição ideológica das correntes de esquerda, a guinada conservadora não encontra resistência na defesa da emancipação do “mundo do trabalho”, ao contrario,  ja que os principais partidos comunistas ocidentais abdicaram da luta revolucionária desde o controle stalinista da terceira internacional, na qual prevaleceu a tese do “socialismo em um só país”.  O que acabou por repercutir foi a perspectiva reformista “kautsky-bernsteiniana” que levou à consolidação do “walfare state”, com a defesa institucional da democracia. Mas em um momento de refluxo da social-democracia, o desvio programático caminhou solenemente para as práticas neoliberais. Assim foram os governos do PT, que se no plano economico encheriam de orgulho tanto a Hayek quanto a Friedmann,  no discurso político capturaram as pautas ligadas aos movimentos identitários e de defesa retórica da inclusão social.

 

O viés de todo este processo começou a se tornar explícito no segundo governo Dilma, quando a forte recessão econômica (a crise de 2008 não foi uma “marolinha”!) contribuiu para a instabilidade política que redundou na  derrocada petista com o impeachment presidencial e a prisão de Lula pela operação lava-jato. Neste momento ja se delineava o crescimento dos movimentos conservadores que ajudaram viabilizar a eleição de Bolsonaro em 2018. Abriu-se a contraposição daqueles temas, em tese afinados ao discurso da “direita”, com o apego ao identitarismo patrocinado pelos partidos de “esquerda”. Apesar da importancia e da necessidade de enfretamento destas questões, tais discussões precisariam integrar um movimento muito mais amplo, capitaneado pela organização dos trabalhadores em luta constante contra a exploração e a superação do capitalismo. Enquanto a institucionalidade (parlamento, judiciario, executivo) atua no sentido de avançar medidas que viabilizem a desregulamentação das relações de trabalho assegurando os lucros do capital, a esquerda democrática se furta deste confronto e enfatiza a defesa identitária polarizada com as pautas de costumes apoiadas pelos setores mais reacionários.

 

Este descolamento do campo da ação além de oportuno também nivela ambos espectros da disputa política no campo eleitoral. O poder dos grandes grupos econômicos encontra-se garantido tanto com Lula quanto com Bolsonaro, claro, sem deixar de mostrar toda sua satisfação com a enorme funcionalidade do segundo, que elevou as denúncias de  corrupção a um patamar superlativo e amplamente visceral, inclusive atingindo os setores militares, até então vistos como impolutos e incólumes de malfadas práticas administrativas. Portanto, a vitória petista pode até aparentar uma guinada política, ou mesmo um aparente triunfo civilizatório, entretanto, dentro dos marcos experimentados, com os amplos acordos realizados, caminha mais para uma solução de continuidade nos limites que caracterizaram a “Nova República”, suprimindo-se apenas os delírios ideológicos e as manifestações coléricas que parte do entorno bolsonarista explicitou. Uma correção no rumo, ja que os resultados da experiência golpista de 2016, apesar de salutar aos setores hegônicos, também acabou por se mostrar um pouco indigesta para a normalidade dos negócios.

 

O Brasil, nos últimos 4 anos, desnudou as profundas contradições de sua “tragetória civilizatória” e expôs o caráter deletério de suas “relações constitutivas”. O grito da transformação, se vier, não será da escolha eleitoral. Precisa ecoar das ruas e encontrar ouvidos dispostos a enfrentar todo um passado de exclusão, indo além da racionalidade cartesiana para compreender as reais causas da nossa miséria: o trabalho e seus grilhões! Fundamental libertá-lo, mas para isso, o papel precípuo das esquerdas é de reorganizá-lo e guiá-lo na construção coletiva de uma realidade na qual não mais existam diferenças de classes, apenas humanas!

                                                                                                                                                                                                                                     CAETANO PROCOPIO

14 de jun. de 2022

PEDAÇO DE PAZ

a melodia sussurra do piano

inspira um acalanto ao espírito

mas os tempos são taciturnos

a música não se alinha ao momento

não há um mínimo de paz quando o todo se alimenta do conflito

a placidez do som se transforma em melancolia

há tanta beleza nas notas, uma súplica ao intangível

alegoria onírica em um mundo impalpável

de vidas em degradação que as retinas turvas ocultam

a realidade morta pelo discurso

um instante de ilusão

uma existência em vão

 

CAETANO PROCOPIO


 

22 de abr. de 2022

BRASIL, UM RECORTE DA BARBARIE CAPITALISTA

 Em 2002, durante visita ao Brasil, o filósofo húngaro Istvan Meszaros concedeu uma entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura. Na voz do célebre autor marxista, as impressões sombrias sobre as perspectivas de futuro para a humanidade. Creio que sua visão soturna não seja uma explicação apocalíptica da história, mas de certa forma uma alusão à citação de Gramsci, para ilustrar a árdua tarefa daqueles que se propõem modificar radicalmente a realidade, acerca do ‘Pessimismo da Razão’ e do ‘Otimismo da Vontade’.

 

Duas décadas após, as palavras do saudoso pensador falecido em 2017 relatam vivamente os dias atuais de devastadora investida neoliberal, com sua face cada vez mais sectária e destrutiva. O recrudescimento político do horizonte democrático é o resultado do aguçamento das contradições na reprodução capitalista e, o autoritarismo, um efeito que subjaz à incapacidade de integração das forças sociais devido a intensa precarização e segmentação das relações de trabalho. Como justificativa ideológica, uma ordem restauradora, salvadora e mitificada se alimenta da proliferação de movimentos ultraconservadores que, apesar da pauta anti-sistema, caminham pari-passu com a defesa dos “valores do livre mercado”.

 

No Brasil, a falência do pacto da Nova República desvela uma escalada arbitrária, o derretimento institucional e a debilidade da tradição democrática em uma sociedade profundamente desigual. Congresso e Judiciário pusilânimes e coniventes com o flagelo bolsonarista que tomou corpo nos últimos anos e ganhou espaço no espectro da chamada “extrema-direita”, exortado pela “debacle” do período petista. Os governos do PT não significaram uma ruptura com o processo histórico nacional e fracassaram como perspectiva de mudança. Administraram com os mesmos métodos da tradição política e mantiveram intacta a perversa estrutura econômico-social. Os anos  Lula-Dilma seguiram a marcha brutal do capitalismo em sua etapa global-financeira não dinamizando qualquer projeto efetivo que abalasse a profunda concentração da riqueza existente, nem mesmo nos marcos de uma transformação nacionalista burguesa.

 

A necrose do Estado brasileiro reflete a maneira perdulária com que as elites daqui o apoderaram em prol dos seus interesses patrimoniais. Coligadas com a dinâmica da economia mundial, o país sofreu passivamente com o assalto em sua soberania ou mesmo independencia: privatizações e desindustrialização que escancararam a vulnerabilidade de um modelo econômico priorizado a partir dos anos noventa, na era FHC. As políticas adotadas nos governos posteriores também conservaram a camisa de força das diretrizes definidas pelos organismos financeiros internacionais, baluartes da hegemonia estadunidense, como o BID e o Banco Mundial e exigentes com o rigor fiscal para controle do déficit e manutenção do chamado “sistema da dívida pública”, contudo, comprometedoras do investimento estatal capaz de assegurar a proteção dos direitos sociais tipificados nas democracias consolidadas no “welfare state”. A coluna vertebral deste sistema está na dependência das exportações de “commodities” geradoras de grandes lucros aos setores do chamado agronegócio (bem como aos investidores em seus rentáveis títulos), em contrapartida patrocina o desmantelamento dos mecanismos garantidores do Estado e promove o crescimento das desigualdades e da pobreza.

 

A crise global agora recoloca novos atores na disputa com os EUA e seus aliados. A Rússia, que com o conflito na Ucrânia busca superar a condição de força secundária no tabuleiro geopolítico e a China, que nas últimas décadas obteve um vertiginoso desenvolvimento de suas forças produtivas e se tornou segunda potência planetária, incomodando a liderança norte-americana.

 

Já o Brasil, que nos últimos 30 anos apenas se ajustou passivamente à “nova ordem”, apesar do tamanho (e da importância) do seu contingente populacional, segue na condição de mero coadjuvante no cenário mundial. Novamente o panorama que se abre por aqui recupera o painel das eleições de 2018. A diferença é que agora Lula estará de fato na disputa, depois da anulação dos processos da operação lava-jato. Uma polarização que não remete a um real antagonismo político, mas somente eleitoral. No cerne das propostas, muito além das divergências no campo ideológico (Lula seria a “esquerda progressista” na defesa incondicional das minorias e do identitarismo e Bolsonaro, a “ultra-direita conservadora” vociferando a retidão nos costumes, o anticomunismo, o apego à religião, às armas e à “liberdade individual”) estarão basicamente em jogo, a manutenção e a administração dos negócios e lucros dos segmentos econômicos controladores de toda vida social, ajustados ao paradigma do “Estado mínimo” e da “capacidade empreendedora” dos indivíduos, argumentos muito presentes nas vozes dos gestores à partir dos anos 1990.

 

Apesar de todas atrocidades cometidas pelo governo vigente, nenhuma iniciativa institucional concreta para removê-lo se deu nos 4 anos do atual mandatário, o que ressalta a condição putrefata da república. É possível se aceitar a barbárie desde que os rumos econômicos sejam preservados. E com o “capitão” este roteiro comungou seus aspectos ainda mais letais.

 

O fim das ilusões “yuppies” mostram uma humanidade cada vez mais em risco diante do vórtice neoliberal que arrasta o mundo para uma fatal negação civilizatória. Some-se à corrida bélica alimentada desde os tempos da guerra fria, a constatação pela ciência dos enormes impactos ambientais decorrentes das ações humanas que elevaram significativamente o perigo de alterações climáticas irremediáveis e viabilizaram o surgimento de agentes biológicos mortais como o sars-cov 2, ameaças iminentes à manutenção da própria vida no planeta.

 

Considerando este painel desalentador, a realidade brasileira se encontra ainda mais exposta à dinâmica dos fluxos dos capitais globais e coloca o país totalmente à deriva das contradições deste modelo fratricida. Nunca o recado deixado por Meszaros foi tão urgente ser ouvido. Hoje, a vontade da transformação  precisa inspirar uma severa e radical crítica da razão atual, que ao contrario de revelar alguma lucidez, esconde uma insana aparência de normalidade.

 

CAETANO PROCOPIO