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10 de out. de 2019

TUDO DEMORANDO EM SER TÃO RUIM

POR MAURO IASI

Ouvi dizer que anda triste. É compreensível, os tempos andam bicudos. Nós podemos e às vezes devemos exercer nosso direito à tristeza, pois, como disse Brecht, aquele que anda por aí sorrindo ainda não recebeu a trágica notícia. Só não temos, no entanto, o direito à desesperança.

Quando reclamamos de nosso tempo e de nossas dificuldades, às vezes não vendo saída, podemos estar sendo profundamente injustos com todos aqueles que viveram tempos de barbárie muito mais dramáticos do que estes que nos couberam. Lembremos o nazi-fascismo, os anos da Primeira Guerra Mundial, a chacina que se abateu sobre os povos que vislumbraram caravelas invadindo suas aldeias, da dor daqueles acorrentados em porões atravessando oceanos de sangue e cobiça – ou mesmo as famílias palestinas ou sírias hoje forçadas a verem seus lares em escombros, uma mãe agarrada ao filho na inclemência do mar do exílio…
É certo que a dor que sentimos não pode ser relativizada, pois não há dor menor para quem sente o abismo se abrindo sobre seus pés, seja porque o mundo resolveu dar uma volta em sua espiral e mergulhar na noite, seja pelo seu coração partido por alguma adaga da vida cotidiana. Dor é dor, dói do mesmo jeito e às vezes chega a nos arrastar pelos tortuosos caminhos da depressão.
Temos recebido notícias alarmantes de jovens camaradas e companheiros que resolvem abreviar seu sofrimento pulando para fora desta merda de vida. Não os julgo, nem os condeno, mas queria oferecer, como um ombro amigo, algumas palavras para ajudar na travessia destes tempos.
Sei que palavras são coisa muito pequena e ajudam pouco, mas todo profundo descolsolo se funda da percepção de que estamos tão longe de qualquer saída que tanto faz seguir andando ou desistir. Às vezes ajuda saber onde estamos. Dizem que o desespero dos náufragos está principalmente em não saber quanto falta para se chegar a alguma terra firme. Então vamos lá.
A única coisa que gostaria de dizer é: não fiquem sozinhos. Atravessar uma depressão é difícil. Sozinho é impossível. Não acredite nessa bobagem de dar um tempo dos outros para poder encontrar a si mesmo – você nunca vai se encontrar em você mesmo. Somos seres sociais e nos conhecemos na relação com os outros. Esta merda de sociedade se funda na fragmentação do ser social em cápsulas individuais, naquilo que Norbert Elias chamou de homus clausulos. Nos jogam nas costas o peso de garantir nossa existência como se ela fosse fruto de nosso exclusivo esforço individual e depois que fracassamos nos fazem sentir que a responsabilidade é nossa.
A forma imediata de manifestação do ser social sob as condições da sociabilidade burguesa é o indivíduo isolado. Marx já descrevia isso em O capital quando afirmava que a forma imediata de manifestação da classe é a concorrência entre os indivíduos por uma posição no mercado de trabalho, como adversários. Daí resulta o que Sartre denominou de “serialidade”, isto é, um conjunto de indivíduos no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa, mas não conformando um grupo, na forma de uma “pluralidade de solidões”. No entanto, esta forma de manifestação não anula o ser social, daí a pertinência dos apontamentos de Marx e Sartre: somos um ser social reduzido à condição de indivíduos isolados.
Em certos momentos, notadamente na prática grupal, este ser social subsumido se expressa. É quando percebemos nossa pequenas e grandes misérias e esperanças no outro como se fossem nossas – e isto pode provocar uma fusão que nos eleva do isolamento à práxis coletiva e criadora capaz de ir além das imposições e limites de um determinado campo prático inerte que nos conforma como uma impossibilidade.
Em nossos trabalhos na educação popular, junto ao Núcleo de Educação Popular 13 de Maio, quando escolhíamos um local para fazer nossas atividades, além da sala de aula na qual se desenvolveria o trabalho educativo, sempre cuidávamos para ter um espaço arquitetônico que nos intervalos fosse capaz de reunir as pessoas. Nada parecido com uma sala de “recreação”, não. Podia ser uma varanda, uma escada, a cozinha, algum lugar para o qual as pessoas de dirigiam, sentavam, conversavam, cantavam, ou simplesmente ficavam juntas. Estamos convencidos que este momento tinha uma enorme função pedagógica. Afinal, é onde o grupo encontrava sua fusão ou resistia contra ela na manutenção de uma federação de indivíduos que iam quebrando suas rígidas fronteiras.
Qualquer um que presenciasse este momento poderia testemunhar a força revolucionária que dali emanava. O próprio Marx relata tal processo nessa passagem dos seus Manuscritos econômico-filosóficos:
“É possível contemplar este movimento prático nos seus mais brilhantes resultados, ao ver agrupamentos de trabalhadores socialistas franceses. Fumar, beber, comer, etc., já não simples meios para juntar as pessoas. A sociedade, a associação, o entretenimento, que de novo tem a sociedade como seu objetivo, é o bastante para eles; a fraternidade dos homens não é uma frase vazia, mas uma realidade, e a nobreza e a humanidade irradia sobre nós a partir das figuras endurecidas pelo trabalho.” (p. 216)
Por isso, não fique sozinho. Milite em seu partido com seus camaradas, em seu sindicato, na sua associação, não se afaste de seus amigos e das pessoas. Fume, beba, cante, faça poesia, pinte, atue, mas faça com as pessoas e para as pessoas. Mas, não de qualquer pessoa, qualquer relação. Nesta sociedade a alienação do trabalho cinde o ser social: nos alienamos de nós mesmos porque nos alienamos dos outros. “Cada qual”, dizia Marx, “procura estabelecer sobre os outros um poder estranho, de maneira a encontrar assim satisfação da própria necessidade egoísta” (idem, p. 207).
Tal resultado triste é consequência do trabalho alienado, uma vez que ele transforma a  “vida genérica do homem, e também a natureza enquanto sua propriedade genérica espiritual, em ser estranho, em meio da existência individual” . O outro é sempre um ser estranho que nos subjuga e explora ou que deve ser subjugado no altar de nossas necessidades egoístas. O que perdemos com isso, segue o mesmo autor, é nossa condição humana, uma vez que desta forma aliena-se “do homem o próprio corpo, bem como a natureza externa, a sua vida intelectual, a sua vida humana” (idem, p. 166).
Desta maneira, as relações subsumidas à alienação sugam nossas emergias ao contrário de nos enriquecer com os laços coletivos. A vida é um fardo e o adoecimento é o resultado. Somente no bojo de relações autênticas, humanas, é que podemos enfrentar os efeitos nefastos da alienação.
As chamadas redes sociais estão longe de ser relações autenticas. São a expressão digital das relações reificadas e fetichizadas do reino das mercadorias. É a pura expressão da serialidade: muitos fazendo a mesma coisa sem que se relacionem de verdade. A culpa não é do instrumento digital em si, podemos lá encontrar nossos amigos, trocar ideias, mas no interior das relações reificadas do capital trata-se da expressão límpida de indivíduos usando os outros para suas próprias necessidades egoístas.
As relações autenticas doem, são construídas, nos desconstroem e nos reconstroem em direções outras em relação àquelas para as quais a inércia nos empurrava… nos salvam do abismo da solidão. Não podem ser resumidas em likes, carinhas alegres, tristes, espantadas ou raivosas. Só quem já olhou para os olhos molhados de quem magoou sabe do que estou falando. No espaço protegido da cápsula digital podemos xingar, mandar tomar… (já fiz muito isso), abstraindo do fato de que do outro lado está uma pessoa (no caso de não ser um robô de uma fazenda de likes). Trata-se de um treinamento para formar canalhas que não se preocupam com o efeito de suas palavras e atos.
Mas, como identificar relações autênticas? Bom, não é fácil… Às vezes você descobre só no final. Mas via de regra são aquelas das quais você sai alegre ou triste, magoado ou agradecido, com raiva ou sereno, mas sempre reconstruído com as marcas que o outro por ventura deixou em seu corpo e espírito (materialistas acreditam em espíritos em sua concretude incorpórea). Os meios de comunicação em massa, entre eles as modernas redes sociais, te esvaziam pela catarse, como analisaram Theodor Adorno e Max Horkheimer: massificam para isolar em solidões inescrutáveis, são em último caso meios de apassivamento.
Só há uma forma de enfrentar a morte: afirmando a vida. Lukács, em sua obra As almas e as formas (portanto antes de aderir ao marxismo), discorre sobre o poeta romântico Novalis,*  apontando que este, ao interrogar a vida, recebe a resposta da morte, e diz: “cantar a morte talvez seja mais nobre e heroico que cantar a vida; mas não foi em busca dessa canção que os românticos saíram à luta”. O filósofo húngaro então completa seu raciocínio afirmando que “somente a vida de Novalis pôde se tornar poesia” e emenda que “se Novalis nos parece tão grande e completo, talvez seja apenas porque foi escravo de um senhor invencível” (p. 97). Ora, nosso senhor não é invencível e atrás destas enormes ondas existe uma praia de areias brancas.
Também odeio esta vida, partilho de sua tristeza e, em grande parte, dessa sensação de impotência no momento. Mas não quero pular da vida com você, quero mudá-la com você. Para isso, nós precisamos… nos encontrar.