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22 de abr. de 2022

BRASIL, UM RECORTE DA BARBARIE CAPITALISTA

 Em 2002, durante visita ao Brasil, o filósofo húngaro Istvan Meszaros concedeu uma entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura. Na voz do célebre autor marxista, as impressões sombrias sobre as perspectivas de futuro para a humanidade. Creio que sua visão soturna não seja uma explicação apocalíptica da história, mas de certa forma uma alusão à citação de Gramsci, para ilustrar a árdua tarefa daqueles que se propõem modificar radicalmente a realidade, acerca do ‘Pessimismo da Razão’ e do ‘Otimismo da Vontade’.

 

Duas décadas após, as palavras do saudoso pensador falecido em 2017 relatam vivamente os dias atuais de devastadora investida neoliberal, com sua face cada vez mais sectária e destrutiva. O recrudescimento político do horizonte democrático é o resultado do aguçamento das contradições na reprodução capitalista e, o autoritarismo, um efeito que subjaz à incapacidade de integração das forças sociais devido a intensa precarização e segmentação das relações de trabalho. Como justificativa ideológica, uma ordem restauradora, salvadora e mitificada se alimenta da proliferação de movimentos ultraconservadores que, apesar da pauta anti-sistema, caminham pari-passu com a defesa dos “valores do livre mercado”.

 

No Brasil, a falência do pacto da Nova República desvela uma escalada arbitrária, o derretimento institucional e a debilidade da tradição democrática em uma sociedade profundamente desigual. Congresso e Judiciário pusilânimes e coniventes com o flagelo bolsonarista que tomou corpo nos últimos anos e ganhou espaço no espectro da chamada “extrema-direita”, exortado pela “debacle” do período petista. Os governos do PT não significaram uma ruptura com o processo histórico nacional e fracassaram como perspectiva de mudança. Administraram com os mesmos métodos da tradição política e mantiveram intacta a perversa estrutura econômico-social. Os anos  Lula-Dilma seguiram a marcha brutal do capitalismo em sua etapa global-financeira não dinamizando qualquer projeto efetivo que abalasse a profunda concentração da riqueza existente, nem mesmo nos marcos de uma transformação nacionalista burguesa.

 

A necrose do Estado brasileiro reflete a maneira perdulária com que as elites daqui o apoderaram em prol dos seus interesses patrimoniais. Coligadas com a dinâmica da economia mundial, o país sofreu passivamente com o assalto em sua soberania ou mesmo independencia: privatizações e desindustrialização que escancararam a vulnerabilidade de um modelo econômico priorizado a partir dos anos noventa, na era FHC. As políticas adotadas nos governos posteriores também conservaram a camisa de força das diretrizes definidas pelos organismos financeiros internacionais, baluartes da hegemonia estadunidense, como o BID e o Banco Mundial e exigentes com o rigor fiscal para controle do déficit e manutenção do chamado “sistema da dívida pública”, contudo, comprometedoras do investimento estatal capaz de assegurar a proteção dos direitos sociais tipificados nas democracias consolidadas no “welfare state”. A coluna vertebral deste sistema está na dependência das exportações de “commodities” geradoras de grandes lucros aos setores do chamado agronegócio (bem como aos investidores em seus rentáveis títulos), em contrapartida patrocina o desmantelamento dos mecanismos garantidores do Estado e promove o crescimento das desigualdades e da pobreza.

 

A crise global agora recoloca novos atores na disputa com os EUA e seus aliados. A Rússia, que com o conflito na Ucrânia busca superar a condição de força secundária no tabuleiro geopolítico e a China, que nas últimas décadas obteve um vertiginoso desenvolvimento de suas forças produtivas e se tornou segunda potência planetária, incomodando a liderança norte-americana.

 

Já o Brasil, que nos últimos 30 anos apenas se ajustou passivamente à “nova ordem”, apesar do tamanho (e da importância) do seu contingente populacional, segue na condição de mero coadjuvante no cenário mundial. Novamente o panorama que se abre por aqui recupera o painel das eleições de 2018. A diferença é que agora Lula estará de fato na disputa, depois da anulação dos processos da operação lava-jato. Uma polarização que não remete a um real antagonismo político, mas somente eleitoral. No cerne das propostas, muito além das divergências no campo ideológico (Lula seria a “esquerda progressista” na defesa incondicional das minorias e do identitarismo e Bolsonaro, a “ultra-direita conservadora” vociferando a retidão nos costumes, o anticomunismo, o apego à religião, às armas e à “liberdade individual”) estarão basicamente em jogo, a manutenção e a administração dos negócios e lucros dos segmentos econômicos controladores de toda vida social, ajustados ao paradigma do “Estado mínimo” e da “capacidade empreendedora” dos indivíduos, argumentos muito presentes nas vozes dos gestores à partir dos anos 1990.

 

Apesar de todas atrocidades cometidas pelo governo vigente, nenhuma iniciativa institucional concreta para removê-lo se deu nos 4 anos do atual mandatário, o que ressalta a condição putrefata da república. É possível se aceitar a barbárie desde que os rumos econômicos sejam preservados. E com o “capitão” este roteiro comungou seus aspectos ainda mais letais.

 

O fim das ilusões “yuppies” mostram uma humanidade cada vez mais em risco diante do vórtice neoliberal que arrasta o mundo para uma fatal negação civilizatória. Some-se à corrida bélica alimentada desde os tempos da guerra fria, a constatação pela ciência dos enormes impactos ambientais decorrentes das ações humanas que elevaram significativamente o perigo de alterações climáticas irremediáveis e viabilizaram o surgimento de agentes biológicos mortais como o sars-cov 2, ameaças iminentes à manutenção da própria vida no planeta.

 

Considerando este painel desalentador, a realidade brasileira se encontra ainda mais exposta à dinâmica dos fluxos dos capitais globais e coloca o país totalmente à deriva das contradições deste modelo fratricida. Nunca o recado deixado por Meszaros foi tão urgente ser ouvido. Hoje, a vontade da transformação  precisa inspirar uma severa e radical crítica da razão atual, que ao contrario de revelar alguma lucidez, esconde uma insana aparência de normalidade.

 

CAETANO PROCOPIO