Quando o liberalismo econômico se utilizou dos
conceitos de John Locke para fundamentar as relações de reprodução da vida
material, havia um sentido norteador. Smith e Ricardo tinham nos direitos naturais
uma pedra angular justificadora do mundo que se avizinhava.
Este novo universo trazia uma fabulosa transformação
no modo de vida das pessoas que poderia superar todo passado sombrio de
escassez e privações. As lutas incessantes e vitoriosas pela obtenção da riqueza
já não mais se concentravam nos poucos nababos com brasões, relegando a massa à
dominação e mera sobrevivência. Agora, os indivíduos não tinham mais seus
destinos orientados por uma revelação divina e o mais comum dos mortais também
estaria apto para concorrer à fortuna e à acumulação.
Adam Smith acreditava que esta nova perspectiva
individual e concorrencial traria prosperidade. Uma dinâmica revolucionária que
acabaria por atingir a todos. A humanidade nascente apreendia a si e superava
as “trevas” através do livre jogo do mercado. Um outro horizonte se abria com
amplas possibilidades a todos, um progresso jamais visto inevitavelmente levaria
os “homens” a outro patamar de desenvolvimento. A produção de bens não estava mais
limitada às vicissitudes da natureza e novas necessidades surgiram.
As mudanças em marcha inspiraram um otimismo e uma fé absoluta
no conhecimento. A verdade revelada pela ciência e a história condenaria os
homens ao perpétuo avanço, o destino enfim seguiria a luz da civilização. Entretanto,
tal sorte se mostrou real apenas para uma parcela dos viventes, já que à margem
desta explosão havia os infortunados que expropriados dos negócios, somente
tinham a oferecer sua força de trabalho. A estes, os ventos não soprariam favoravelmente
e a vida não lhes reservaria grandes conquistas. Mas muito pior, ao sul do globo,
onde o espírito empreendedor não se deu sob auspícios do iluminismo e sim com o
estampido das armas e o uso corriqueiro da violência. O domínio colonial explicitou
todas as contradições de uma universalidade que só se realizaria no discurso
teórico, na prática seriam reproduzidas e intensificadas formas de exploração
anteriores. A realidade não deixou de refletir os anseios de uma classe social que
define seus paradigmas, sua hegemonia e molda os parâmetros da sociabilidade
segundo suas aspirações e objetivos.
Neste sentido, a lógica imperante é a da mercadoria
porque através dela que se da a finalidade deste processo: o lucro! A dicotomia
da reprodução capitalista se materializa em um enorme dinamismo na produção de
bens ao mesmo tempo que a utilização não se dá de forma igualitária, exatamente
pelo seu funcionamento paradoxal exigir uma intensa circulação das mercadorias mas
também a necessidade de extração de valor do trabalho para produzi-las, ou
seja, quem produz não se beneficia do que produz e a desigualdade jamais deixou
de existir no plano real mas mistificada pela identificação ideológica dos
direitos naturais consagrados na sociedade civil moderna. A democracia, assim, se
torna uma espécie de altar da contemporaneidade,
onde seus termos estão afastados de qualquer questionamento concreto, definidos
formalmente em diplomas legais garantidos como normas jurídicas comuns, regularizam
a convivência entre os cidadãos, mesmo que estes tenham profundas diferenças
materiais. A abundância e opulência de poucos se normalizam frente a carência
de muitos, como sendo algo natural que se estrutura nas relações.
Desta forma, perde-se o sentido ético do convívio uma
vez que todo sistema produtivo não se dá em razão das reais necessidades humanas,
mas sim como elemento de valorização do capital, o verdadeiro processo
controlador da objetividade e definidor da subjetividade. Tomemos aqui um
exemplo singelo para ilustrar a questão: imaginemos o consumo de ovos.
Desnecessário discorrer sobre sua utilidade, por ser um alimento consumido até mesmo em escala mundial. A
considerar que existam amplas regiões do globo onde ainda haja fome, por qual
razão um produtor deste insumo deixaria de fazê-lo devido ao encerramento de
suas atividades por ter atingido a situação de falência? Pelo fato de não ser o
seu valor de uso (necessidade) essencial para sua produção, mas sim o seu valor
de troca (mercado). Por mais que exista a premência por determinado produto, se
uma empresa não conseguir eficiência negocial para auferir lucro, seu destino é
a extinção! É este o significado fundamental que irá definir sobre a
viabilidade ou não de um determinado bem continuar ser produzido.
Portanto, desmascarado um dos mitos dos apologistas do
mercado, pois a eficiência deste apenas
ocorre quando a alocação de recursos se faz urgente para garantir primeiramente
a acumulação e os desejos do “pobre” consumidor acabam se convertendo em mero
elemento participativo do processo, mas o estímulo ao individualismo hedonista é
imprescindível naquilo que garanta a permanente circulação das mercadorias. A
volúpia consumista se torna imperativa para garantir a sobrevivência deste
sistema. Assim, uma civilização que apesar
da produção da abundância convive com a profunda escassez de parcelas da
população global está fadada a agonizar e a se barbarizar. Sua ética
irrefutável é a da competição, que impede a convivência genuinamente solidária
e exige a primazia da vida privada na qual as questões individuais/familiares
se tornam soberanas, ou seja, o patrimônio ocupa o centro de toda dinâmica
pessoal e o contato com os outros acaba se revelando apenas um detalhe dentro
deste vórtice.
O único mundo possível que se vislumbra é o de crises intermináveis
(sociais, econômicas, climáticas, sanitárias etc) mas que nas suas gêneses
possuem um dínamo comum: o modo de reprodução social do capitalismo. Sua superação
está na ordem do dia como alternativa de sobrevivência da própria humanidade, já
que todas as instabilidades vividas possuem, no seu âmago, suas determinações e
não há espaço onde reine equilíbrio ou paz duradouras, mas tensões e conflitos
promovidos pelo seu movimento permanente de expansão. A finitude do mundo contrasta
com a necessidade do contínuo crescimento, na busca incessante por recursos
naturais exploráveis que irão despejar uma infindável quantidade de produtos no
mercado, mas que nunca servirão para garantir o bem viver de todos.
Esta realidade é, na sua essência, alienada porque definida
por um movimento que escapa dos propósitos humanos e, por isso, independe destas
determinações. Não há panorama, dentro da esfera das relações vigentes, que
possa transformá-las, suas orientações aceitam unicamente a convivência privada
e o espírito competitivo, ao arrepio da igualdade material entre as pessoas,
imperativa para que as individualidades floresçam substantivamente.
O desenvolvimento capitalista permitiu a emancipação da humanidade que se viu livre do pleno jugo à natureza, ao mesmo tempo que revolucionou a produção de bens em escala jamais vista na história, também germinou contradições insolúveis por sua reprodução ter como fundamento, a própria autovalorização. Não há como corrigi-lo porque esta sua lógica mais elementar. A única possibilidade é superá-lo para juntamente com ele sepultar este modo de vida insano.
CAETANO PROCOPIO