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25 de jun. de 2023

A LÓGICA DA RAZÃO INSANA

 

Quando o liberalismo econômico se utilizou dos conceitos de John Locke para fundamentar as relações de reprodução da vida material, havia um sentido norteador. Smith e Ricardo tinham nos direitos naturais uma pedra angular justificadora do mundo que se avizinhava.

 

Este novo universo trazia uma fabulosa transformação no modo de vida das pessoas que poderia superar todo passado sombrio de escassez e privações. As lutas incessantes e vitoriosas pela obtenção da riqueza já não mais se concentravam nos poucos nababos com brasões, relegando a massa à dominação e mera sobrevivência. Agora, os indivíduos não tinham mais seus destinos orientados por uma revelação divina e o mais comum dos mortais também estaria apto para concorrer à fortuna e à acumulação.

 

Adam Smith acreditava que esta nova perspectiva individual e concorrencial traria prosperidade. Uma dinâmica revolucionária que acabaria por atingir a todos. A humanidade nascente apreendia a si e superava as “trevas” através do livre jogo do mercado. Um outro horizonte se abria com amplas possibilidades a todos, um progresso jamais visto inevitavelmente levaria os “homens” a outro patamar de desenvolvimento. A produção de bens não estava mais limitada às vicissitudes da natureza e novas necessidades surgiram.

 

As mudanças em marcha inspiraram um otimismo e uma fé absoluta no conhecimento. A verdade revelada pela ciência e a história condenaria os homens ao perpétuo avanço, o destino enfim seguiria a luz da civilização. Entretanto, tal sorte se mostrou real apenas para uma parcela dos viventes, já que à margem desta explosão havia os infortunados que expropriados dos negócios, somente tinham a oferecer sua força de trabalho. A estes, os ventos não soprariam favoravelmente e a vida não lhes reservaria grandes conquistas. Mas muito pior, ao sul do globo, onde o espírito empreendedor não se deu sob auspícios do iluminismo e sim com o estampido das armas e o uso corriqueiro da violência. O domínio colonial explicitou todas as contradições de uma universalidade que só se realizaria no discurso teórico, na prática seriam reproduzidas e intensificadas formas de exploração anteriores. A realidade não deixou de refletir os anseios de uma classe social que define seus paradigmas, sua hegemonia e molda os parâmetros da sociabilidade segundo suas aspirações e objetivos.

 

Neste sentido, a lógica imperante é a da mercadoria porque através dela que se da a finalidade deste processo: o lucro! A dicotomia da reprodução capitalista se materializa em um enorme dinamismo na produção de bens ao mesmo tempo que a utilização não se dá de forma igualitária, exatamente pelo seu funcionamento paradoxal exigir uma intensa circulação das mercadorias mas também a necessidade de extração de valor do trabalho para produzi-las, ou seja, quem produz não se beneficia do que produz e a desigualdade jamais deixou de existir no plano real mas mistificada pela identificação ideológica dos direitos naturais consagrados na sociedade civil moderna. A democracia, assim, se torna uma espécie de  altar da contemporaneidade, onde seus termos estão afastados de qualquer questionamento concreto, definidos formalmente em diplomas legais garantidos como normas jurídicas comuns, regularizam a convivência entre os cidadãos, mesmo que estes tenham profundas diferenças materiais. A abundância e opulência de poucos se normalizam frente a carência de muitos, como sendo algo natural que se estrutura nas relações.

 

Desta forma, perde-se o sentido ético do convívio uma vez que todo sistema produtivo não se dá em razão das reais necessidades humanas, mas sim como elemento de valorização do capital, o verdadeiro processo controlador da objetividade e definidor da subjetividade. Tomemos aqui um exemplo singelo para ilustrar a questão: imaginemos o consumo de ovos. Desnecessário discorrer sobre sua utilidade, por ser um alimento  consumido até mesmo em escala mundial. A considerar que existam amplas regiões do globo onde ainda haja fome, por qual razão um produtor deste insumo deixaria de fazê-lo devido ao encerramento de suas atividades por ter atingido a situação de falência? Pelo fato de não ser o seu valor de uso (necessidade) essencial para sua produção, mas sim o seu valor de troca (mercado). Por mais que exista a premência por determinado produto, se uma empresa não conseguir eficiência negocial para auferir lucro, seu destino é a extinção! É este o significado fundamental que irá definir sobre a viabilidade ou não de um determinado bem continuar ser produzido.

 

Portanto, desmascarado um dos mitos dos apologistas do mercado, pois a  eficiência deste apenas ocorre quando a alocação de recursos se faz urgente para garantir primeiramente a acumulação e os desejos do “pobre” consumidor acabam se convertendo em mero elemento participativo do processo, mas o estímulo ao individualismo hedonista é imprescindível naquilo que garanta a permanente circulação das mercadorias. A volúpia consumista se torna imperativa para garantir a sobrevivência deste sistema.  Assim, uma civilização que apesar da produção da abundância convive com a profunda escassez de parcelas da população global está fadada a agonizar e a se barbarizar. Sua ética irrefutável é a da competição, que impede a convivência genuinamente solidária e exige a primazia da vida privada na qual as questões individuais/familiares se tornam soberanas, ou seja, o patrimônio ocupa o centro de toda dinâmica pessoal e o contato com os outros acaba se revelando apenas um detalhe dentro deste vórtice.

 

O único mundo possível que se vislumbra é o de crises intermináveis (sociais, econômicas, climáticas, sanitárias etc) mas que nas suas gêneses possuem um dínamo comum: o modo de reprodução social do capitalismo. Sua superação está na ordem do dia como alternativa de sobrevivência da própria humanidade, já que todas as instabilidades vividas possuem, no seu âmago, suas determinações e não há espaço onde reine equilíbrio ou paz duradouras, mas tensões e conflitos promovidos pelo seu movimento permanente de expansão. A finitude do mundo contrasta com a necessidade do contínuo crescimento, na busca incessante por recursos naturais exploráveis que irão despejar uma infindável quantidade de produtos no mercado, mas que nunca servirão para garantir o bem viver de todos.

 

Esta realidade é, na sua essência, alienada porque definida por um movimento que escapa dos propósitos humanos e, por isso, independe destas determinações. Não há panorama, dentro da esfera das relações vigentes, que possa transformá-las, suas orientações aceitam unicamente a convivência privada e o espírito competitivo, ao arrepio da igualdade material entre as pessoas, imperativa para que as individualidades floresçam substantivamente.

 

O desenvolvimento capitalista permitiu a emancipação da humanidade que se viu livre do pleno jugo à natureza, ao mesmo tempo que revolucionou a produção de bens em escala jamais vista na história, também germinou contradições insolúveis por sua reprodução ter como fundamento, a própria autovalorização. Não há como corrigi-lo porque esta sua lógica mais elementar. A única possibilidade é superá-lo para juntamente com ele sepultar este modo de vida insano.  

CAETANO PROCOPIO