Ouvi dizer que anda triste. É compreensível, os tempos andam bicudos. Nós podemos e às vezes devemos
exercer nosso direito à tristeza, pois, como disse Brecht, aquele que
anda por aí sorrindo ainda não recebeu a trágica notícia. Só não temos,
no entanto, o direito à desesperança.
Quando reclamamos de nosso tempo e de
nossas dificuldades, às vezes não vendo saída, podemos estar sendo
profundamente injustos com todos aqueles que viveram tempos de barbárie
muito mais dramáticos do que estes que nos couberam. Lembremos o
nazi-fascismo, os anos da Primeira Guerra Mundial, a chacina que se
abateu sobre os povos que vislumbraram caravelas invadindo suas aldeias,
da dor daqueles acorrentados em porões atravessando oceanos de sangue e
cobiça – ou mesmo as famílias palestinas ou sírias hoje forçadas a
verem seus lares em escombros, uma mãe agarrada ao filho na inclemência
do mar do exílio…
É certo que a dor que sentimos não pode
ser relativizada, pois não há dor menor para quem sente o abismo se
abrindo sobre seus pés, seja porque o mundo resolveu dar uma volta em
sua espiral e mergulhar na noite, seja pelo seu coração partido por
alguma adaga da vida cotidiana. Dor é dor, dói do mesmo jeito e às vezes
chega a nos arrastar pelos tortuosos caminhos da depressão.
Temos recebido notícias alarmantes de
jovens camaradas e companheiros que resolvem abreviar seu sofrimento
pulando para fora desta merda de vida. Não os julgo, nem os condeno, mas
queria oferecer, como um ombro amigo, algumas palavras para ajudar na
travessia destes tempos.
Sei que palavras são coisa muito pequena e
ajudam pouco, mas todo profundo descolsolo se funda da percepção de que
estamos tão longe de qualquer saída que tanto faz seguir andando ou
desistir. Às vezes ajuda saber onde estamos. Dizem que o desespero dos
náufragos está principalmente em não saber quanto falta para se chegar a
alguma terra firme. Então vamos lá.
A única coisa que gostaria de dizer é: não fiquem sozinhos.
Atravessar uma depressão é difícil. Sozinho é impossível. Não acredite
nessa bobagem de dar um tempo dos outros para poder encontrar a si mesmo
– você nunca vai se encontrar em você mesmo. Somos seres sociais e nos
conhecemos na relação com os outros. Esta merda de sociedade se funda na
fragmentação do ser social em cápsulas individuais, naquilo que Norbert
Elias chamou de homus clausulos. Nos jogam nas costas o peso
de garantir nossa existência como se ela fosse fruto de nosso exclusivo
esforço individual e depois que fracassamos nos fazem sentir que a
responsabilidade é nossa.
A forma imediata de manifestação do ser
social sob as condições da sociabilidade burguesa é o indivíduo isolado.
Marx já descrevia isso em O capital quando afirmava que a
forma imediata de manifestação da classe é a concorrência entre os
indivíduos por uma posição no mercado de trabalho, como adversários. Daí
resulta o que Sartre denominou de “serialidade”, isto é, um conjunto de
indivíduos no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa, mas não conformando
um grupo, na forma de uma “pluralidade de solidões”. No entanto, esta
forma de manifestação não anula o ser social, daí a pertinência dos
apontamentos de Marx e Sartre: somos um ser social reduzido à condição de indivíduos isolados.
Em certos momentos, notadamente na
prática grupal, este ser social subsumido se expressa. É quando
percebemos nossa pequenas e grandes misérias e esperanças no outro como
se fossem nossas – e isto pode provocar uma fusão que nos eleva do
isolamento à práxis coletiva e criadora capaz de ir além das imposições e
limites de um determinado campo prático inerte que nos conforma como
uma impossibilidade.
Em nossos trabalhos na educação popular,
junto ao Núcleo de Educação Popular 13 de Maio, quando escolhíamos um
local para fazer nossas atividades, além da sala de aula na qual se
desenvolveria o trabalho educativo, sempre cuidávamos para ter um espaço
arquitetônico que nos intervalos fosse capaz de reunir as pessoas. Nada
parecido com uma sala de “recreação”, não. Podia ser uma varanda, uma
escada, a cozinha, algum lugar para o qual as pessoas de dirigiam,
sentavam, conversavam, cantavam, ou simplesmente ficavam juntas. Estamos
convencidos que este momento tinha uma enorme função pedagógica.
Afinal, é onde o grupo encontrava sua fusão ou resistia contra ela na
manutenção de uma federação de indivíduos que iam quebrando suas rígidas
fronteiras.
Qualquer um que presenciasse este momento
poderia testemunhar a força revolucionária que dali emanava. O próprio
Marx relata tal processo nessa passagem dos seus Manuscritos econômico-filosóficos:
“É possível contemplar
este movimento prático nos seus mais brilhantes resultados, ao ver
agrupamentos de trabalhadores socialistas franceses. Fumar, beber,
comer, etc., já não simples meios para juntar as pessoas. A sociedade, a
associação, o entretenimento, que de novo tem a sociedade como seu
objetivo, é o bastante para eles; a fraternidade dos homens não é uma
frase vazia, mas uma realidade, e a nobreza e a humanidade irradia sobre
nós a partir das figuras endurecidas pelo trabalho.” (p. 216)
Por isso, não fique sozinho. Milite em
seu partido com seus camaradas, em seu sindicato, na sua associação, não
se afaste de seus amigos e das pessoas. Fume, beba, cante, faça poesia,
pinte, atue, mas faça com as pessoas e para as pessoas. Mas, não de
qualquer pessoa, qualquer relação. Nesta sociedade a alienação do
trabalho cinde o ser social: nos alienamos de nós mesmos porque nos
alienamos dos outros. “Cada qual”, dizia Marx, “procura estabelecer
sobre os outros um poder estranho, de maneira a encontrar assim
satisfação da própria necessidade egoísta” (idem, p. 207).
Tal resultado triste é consequência do
trabalho alienado, uma vez que ele transforma a “vida genérica do
homem, e também a natureza enquanto sua propriedade genérica espiritual,
em ser estranho, em meio da existência individual” . O outro é sempre
um ser estranho que nos subjuga e explora ou que deve ser subjugado no
altar de nossas necessidades egoístas. O que perdemos com isso, segue o
mesmo autor, é nossa condição humana, uma vez que desta forma aliena-se
“do homem o próprio corpo, bem como a natureza externa, a sua vida
intelectual, a sua vida humana” (idem, p. 166).
Desta maneira, as relações subsumidas à
alienação sugam nossas emergias ao contrário de nos enriquecer com os
laços coletivos. A vida é um fardo e o adoecimento é o resultado.
Somente no bojo de relações autênticas, humanas, é que podemos enfrentar
os efeitos nefastos da alienação.
As chamadas redes sociais estão longe de
ser relações autenticas. São a expressão digital das relações reificadas
e fetichizadas do reino das mercadorias. É a pura expressão da
serialidade: muitos fazendo a mesma coisa sem que se relacionem de
verdade. A culpa não é do instrumento digital em si, podemos lá
encontrar nossos amigos, trocar ideias, mas no interior das relações
reificadas do capital trata-se da expressão límpida de indivíduos usando
os outros para suas próprias necessidades egoístas.
As relações autenticas doem, são
construídas, nos desconstroem e nos reconstroem em direções outras em
relação àquelas para as quais a inércia nos empurrava… nos salvam do
abismo da solidão. Não podem ser resumidas em likes, carinhas
alegres, tristes, espantadas ou raivosas. Só quem já olhou para os olhos
molhados de quem magoou sabe do que estou falando. No espaço protegido
da cápsula digital podemos xingar, mandar tomar… (já fiz muito isso),
abstraindo do fato de que do outro lado está uma pessoa (no caso de não
ser um robô de uma fazenda de likes). Trata-se de um treinamento para formar canalhas que não se preocupam com o efeito de suas palavras e atos.
Mas, como identificar relações
autênticas? Bom, não é fácil… Às vezes você descobre só no final. Mas
via de regra são aquelas das quais você sai alegre ou triste, magoado ou
agradecido, com raiva ou sereno, mas sempre reconstruído com as marcas
que o outro por ventura deixou em seu corpo e espírito (materialistas
acreditam em espíritos em sua concretude incorpórea). Os meios de
comunicação em massa, entre eles as modernas redes sociais, te esvaziam
pela catarse, como analisaram Theodor Adorno e Max Horkheimer:
massificam para isolar em solidões inescrutáveis, são em último caso
meios de apassivamento.
Só há uma forma de enfrentar a morte: afirmando a vida. Lukács, em sua obra As almas e as formas (portanto
antes de aderir ao marxismo), discorre sobre o poeta romântico
Novalis,* apontando que este, ao interrogar a vida, recebe a resposta
da morte, e diz: “cantar a morte talvez seja mais nobre e heroico que
cantar a vida; mas não foi em busca dessa canção que os românticos
saíram à luta”. O filósofo húngaro então completa seu raciocínio
afirmando que “somente a vida de Novalis pôde se tornar poesia” e emenda
que “se Novalis nos parece tão grande e completo, talvez seja apenas
porque foi escravo de um senhor invencível” (p. 97). Ora, nosso senhor
não é invencível e atrás destas enormes ondas existe uma praia de areias
brancas.
Também odeio esta vida, partilho de sua
tristeza e, em grande parte, dessa sensação de impotência no momento.
Mas não quero pular da vida com você, quero mudá-la com você. Para isso,
nós precisamos… nos encontrar.
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