Creio ter utilizado o termo bolsonarismo pela primeira vez nos primórdios da campanha eleitoral em 2018. Passados mais de 4 anos desde então, o “governo” Bolsonaro nos deixa como legado não apenas o rastro de destruição, mas a completa putrefação da República e suas instituições.
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O
fenômeno bolsonarista, se é que podemos assim chamá-lo, possui peculiaridades
que refletem aspectos do nosso desenvolvimento nacional, mas também se conecta à
nova onda conservadora global, reflexo da profunda crise do capitalismo em sua
fase “neoliberal/pós-moderna”. Esta “nova
extrema-direita”, aqui no Brasil, se inspira em velhos lemas nazi-fascistas que
não diferem daqueles deflagrados em outros movimentos importantes da história do
país, como no Estado Novo (principalmente com o integralismo) e no golpe de
1964: a defesa da familia, da propriedade, da liberdade individual e o combate à
ameaça comunista.
Mas o que essencialmente caracteriza estes “ressurgimentos”
em escala planetária, apesar das peculiaridades locais, é que reproduzem os
discursos contra minorias, estrangeiros, refugiados, impingindo a tais grupos a
responsabilidade pela crise economica, a falta de emprego ou mesmo a redução de
salários e do padrão de vida médio nos respectivos países. Criam-se inimigos
e os associam às suas contendas mascarando as reais contradições nas
relações de produção capitalistas. Desviam a atenção acerca da centralidade do
problema, identificada nas divergências inconciliáveis entre capital-trabalho,
que dissolvidas no processo de reestruturação produtiva, ampararam a crescente
precarização das atividades laborais em marcha principalmente à partir da
década de 1990. Atacam aqueles elementos que não são os verdadeiros agentes da disputa
para exatamente escamotear a realidade, uma vez que hoje, o grande óbice à expansão
do lucro, é o aparato estatal-protetor dos direitos trabalhistas, resquício do
apogeu social-democrata que o capitalismo, à partir das últimas décadas do século
XX, busca superar.
Em um período de profunda diluição ideológica das
correntes de esquerda, a guinada conservadora não encontra resistência na
defesa da emancipação do “mundo do trabalho”, ao contrario, ja que os principais partidos comunistas ocidentais
abdicaram da luta revolucionária desde o controle stalinista da terceira
internacional, na qual prevaleceu a tese do “socialismo em um só país”. O que acabou por repercutir foi a perspectiva reformista
“kautsky-bernsteiniana” que levou à consolidação do “walfare state”, com a defesa
institucional da democracia. Mas em um momento de refluxo da social-democracia,
o desvio programático caminhou solenemente para as práticas neoliberais. Assim
foram os governos do PT, que se no plano economico encheriam de orgulho tanto a
Hayek quanto a Friedmann, no discurso
político capturaram as pautas ligadas aos movimentos identitários e de defesa retórica
da inclusão social.
O viés de todo este processo começou a se tornar explícito
no segundo governo Dilma, quando a forte recessão econômica (a crise de 2008
não foi uma “marolinha”!) contribuiu para a instabilidade política que redundou
na derrocada petista com o impeachment presidencial
e a prisão de Lula pela operação lava-jato. Neste momento ja se delineava o crescimento
dos movimentos conservadores que ajudaram viabilizar a eleição de Bolsonaro em
2018. Abriu-se a contraposição daqueles temas, em tese afinados ao discurso da “direita”,
com o apego ao identitarismo patrocinado pelos partidos de “esquerda”. Apesar da
importancia e da necessidade de enfretamento destas questões, tais discussões precisariam
integrar um movimento muito mais amplo, capitaneado pela organização dos
trabalhadores em luta constante contra a exploração e a superação do
capitalismo. Enquanto a institucionalidade (parlamento, judiciario, executivo) atua
no sentido de avançar medidas que viabilizem a desregulamentação das relações
de trabalho assegurando os lucros do capital, a esquerda democrática se furta
deste confronto e enfatiza a defesa identitária polarizada com as pautas de
costumes apoiadas pelos setores mais reacionários.
Este descolamento do campo da ação além de oportuno
também nivela ambos espectros da disputa política no campo eleitoral. O poder dos
grandes grupos econômicos encontra-se garantido tanto com Lula quanto com
Bolsonaro, claro, sem deixar de mostrar toda sua satisfação com a enorme funcionalidade
do segundo, que elevou as denúncias de corrupção a um patamar superlativo e amplamente
visceral, inclusive atingindo os setores militares, até então vistos como
impolutos e incólumes de malfadas práticas administrativas. Portanto, a vitória
petista pode até aparentar uma guinada política, ou mesmo um aparente triunfo
civilizatório, entretanto, dentro dos marcos experimentados, com os amplos acordos
realizados, caminha mais para uma solução de continuidade nos limites que
caracterizaram a “Nova República”, suprimindo-se apenas os delírios ideológicos
e as manifestações coléricas que parte do entorno bolsonarista explicitou. Uma
correção no rumo, ja que os resultados da experiência golpista de 2016, apesar
de salutar aos setores hegônicos, também acabou por se mostrar um pouco
indigesta para a normalidade dos negócios.
O Brasil, nos últimos 4
anos, desnudou as profundas contradições de sua “tragetória civilizatória” e
expôs o caráter deletério de suas “relações constitutivas”. O grito da
transformação, se vier, não será da escolha eleitoral. Precisa ecoar das ruas e
encontrar ouvidos dispostos a enfrentar todo um passado de exclusão, indo além
da racionalidade cartesiana para compreender as reais causas da nossa miséria: o
trabalho e seus grilhões! Fundamental libertá-lo, mas para isso, o papel
precípuo das esquerdas é de reorganizá-lo e guiá-lo na construção coletiva de uma
realidade na qual não mais existam diferenças de classes, apenas humanas!