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6 de fev. de 2007

CARTA PARA UM AMIGO

É meu amigo, a morte passa onde existe o medo. E o medo... a vida. E a vida... Por que as pessoas querem viver tanto? Viver, procriar, acumular... são ações tão comuns que, em nenhum momento pára-se para pensar: 'Navegar é preciso, viver não é preciso'. Eu não anseio o acúmulo dos anos. A terrível somatória das ações. Não! Para que? Volto a citar Borges, 'todos seremos parte do esquecimento, a tênue substância de que é feito o universo'. A vida só se procria por meio da arte, seja ela escrita, cantada, pintada, tocada, enfim, a arte contra a verdade destruidora da vida sem sentido. Só ela merece viver.
Sempre procurei fazer arte. Já rimei as ocasiões, toquei a minha revolta, tatuei as minhas marcas, transformei em filme meus pensamentos, fiz poesia... enfim, tenho a arte como a minha maior arma contra mim mesmo. Contra o tempo e suas marcas, contra a hipocrisia de todos. Faço arte para continuar a existir. Reinvento a todo momento minha forma de ver o mundo e as coisas. E a cada minuto vejo aquilo cujo tamanho é proporcionalmente igual aos meus pensamentos. E me faço grande em um mundo tão pequeno.
Estou vestido de branco, descalço. Caminho dentro de um enorme lamaçal e tenho que chegar ao seu fim... limpo! Para isso conto com a ajuda de várias forças da natureza. Pedi a elas que em protegessem. Um grupo de muito grande de formigas revestiu o meu corpo, tornando-o impermeável. Para abrir caminho conto com a ajuda do vento, que sopra com a ira de um tufão. Às vezes paramos um pouco. Afinal, precisamos descansar. As formigas são muito agitadas, mas elas gostam de me ouvir falar. Conto-lhes histórias que aprendi com os livros. Mas para elas, o que realmente importa é a minha companhia. Os livros, para as formigas, são apenas comida. Elas adoram celulose. Mas acho que convenci algumas a buscar outras fontes de alimento. Para isso exemplifiquei que os livros são, de fato, alimento, mas não da vontade fisiológica, mas sim vida. Confesso que a maior parte delas não deu a mínima para mim. Mas ainda gostam de me ouvir falar.
Já o vento é ativo demais. Não pára nunca. Mas ele já conhece todas as minhas histórias e me respeita por continuar a contá-las.
Geralmente nossa pausa dura uma semana, no mínimo. Caminhamos direto apenas duas ou três horas. Não temos pressa. Nem queremos chegar logo. Fazemos apenas o que gostamos de fazer, afinal somos livres. Nosso único problema é a lama. Mas sempre a ignoramos e para nós é como se ela não existisse. Sabemos que há uma grande diferença entre as massas. E sabemos respeitar essa condição.
Tem dias que não tenho vontade de contar nenhuma história. E nesse dia as formigas procuram criar algo para me mostrar. E assim trocamos muitas idéias, porque sei que não dependo delas para me fazer ouvir e nem elas dependem de mim para existir. Por isso somos completos e temos uma missão. Trata-se de mais uma missão qualquer. Como todas aquelas que as pessoas acham que têm na vida. A nossa é apenas atravessar um lamaçal vestidos de branco e com os pés descalços.
E a arte nos consola.

VANDERSON PIRES

Um comentário:

Marcelo M. Baronheid disse...

Genial, Vanderson!! Gostei muito cara!