Total de visualizações de página

3 de dez. de 2008

O DEUS MORTO

Dois dias se passaram. E o vômito não cessava. O mal-estar, a angústia atormentadora... Parecia que nenhum remédio seria capaz de curar aquela situação. Pobre homem! Tudo antes parecia normal.
A vida era igual à de todos. Acordar cedo, ir para o trabalho, sonhar com um futuro melhor. E assim os dias passavam. Como era bom encontrar os amigos para conversar sobre assuntos em que todo mundo finge ser expert: política, futebol, religião, mulheres, a vida... Mas tudo isso sempre acabava em risos e piadas. E quais destas coisas não são dignas de risos e piadas?

Certo dia, um amigo veio convicto lhe falar sobre a importância de se ter uma vida regrada, sem vícios, constituir família, etc. Tinha acabado de conhecer uma garota. Estava apaixonado. Dois anos depois, este mesmo amigo teve depressão e síndrome do pânico. Passou a tomar vários medicamentos, misturava com bebidas alcoólicas...

Sua namorada o havia trocado por um novo amor que ela conheceu em uma viagem. Todos os seus discursos moralistas deixaram de existir. Naquele momento, era insensato querer, seja lá o que fosse, intervir em seu mundo. Mesmo o bom amigo deve ter cautela nas observações, nos conselhos. As opiniões das pessoas são muito variadas. Isso torna impossível um ponto de encontro nas idéias e pensamentos, mesmo diante das concepções mais coerentes e racionais.

Nesta situação, seu amigo era mais uma mente perturbada, incapaz de decidir qualquer mudança, pois sempre nos empenhamos em defender tudo aquilo que está no coração. E o coração é egoísta demais, sempre. Nunca deixa o mínimo espaço para a razão. Cria as convicções. Obriga-nos a carregar bandeiras pesadas e nos faz tropeçar nas contradições. E o mundo do seu amigo havia mudado tão rapidamente...

Outro amigo, o mais inconseqüente, gostava de ostentar sua liberdade. Machista de carteirinha, adorava música, fumava maconha, era ateu, tinha o discurso mais liberal do mundo. Casou-se. Teve dois filhos. E passou a ver a vida de outra forma.

Já uma amiga de infância sonhava em se casar. Ter filhos era a sua meta. Vivia dizendo que nasceu para ser mãe. Chegava a espantar os namorados com este assunto. Até que, com muito custo, conseguiu convencer um rapaz mais novo que ela a se casar. Ela finalmente virou mãe. Já ser pai não era muito o forte do rapaz. Logo se separaram. A criança cresceu sem a presença do pai. Virou um adolescente problemático e cheio de traumas. A amiga ainda pensa em se casar de novo e ter mais filhos...

Estas histórias começavam a gritar em sua cabeça. Mas Ele não tinha nada a ver com isso. Sua vida não tinha tomado nenhum destes rumos e Ele amava a todos da mesma forma e se preocupava com eles.

Mas as dores de cabeça só aumentavam. Pediu uns dias de descanso do trabalho. Não conseguia se levantar de sua cama. Ainda não tinha contado nada a ninguém, pois não queria levar seus problemas para os outros. Ainda mais por não saber o que estava acontecendo. O médico disse que era estresse do trabalho, mas Ele não estava nada estressado. Aliás, nunca esteve.

Entretanto, era inevitável fechar os olhos e achar aquilo tudo normal. Sem julgar o que é certo ou errado, parecia que as angústias daquelas pessoas passaram a ser suas também, como uma penitência por ele ter sido tão livre em seu modo de ser e de pensar.

Esta possível ligação era algo do tipo espiritual e anímica ou era apenas um delírio momentâneo?

Seu corpo tremia de frio. Um frio que mesclava os ares das ruas, das calçadas sujas e escuras. A vida, que antes era tranqüila, tinha agora um peso incalculável.

Várias cenas passavam pela sua cabeça. Coisas que Ele nunca havia se lembrado antes. Sua infância, o retorno ao útero materno, slides de um futuro desconhecido. Trêmulo, adormeceu.

E seu mundo passou a ser um pensamento sem retoque. Nu, verdadeiro e cruel. Seus olhos não eram mais capazes de ver a beleza em nada. Nada!

Acordou depois de algum tempo. Viu em seu celular várias ligações não atendidas. Amigos, trabalho, família, mulheres... Subitamente, arremessou o aparelho contra a parede. Os olhos ardiam. Era como se o corpo o tivesse julgado e a sentença fosse a cegueira. Ele teria de ficar a sós com seus pensamentos. Em poucos minutos, não era capaz de ver mais nada.

Desespero, gritos... Nada daquilo adiantava. Ninguém veio lhe socorrer. Seus amigos estavam muito ocupados com suas vidas. E ninguém se preocupa mais com os outros do que consigo mesmo. Era Ele sozinho com sua mente.

"Onde está a beleza da vida?", pensava. A beleza que nos faz contemplar o prazer que afasta todo o mal. Ele estava acuado em sua própria mente, a mais terrível de todas as prisões. Sabe aqueles pensamentos que temos quando alguém fala algo que não nos agrada? Pois é, eles nunca vão embora. Ficam ali, guardados em algum lugar, quietos, prontos para nos atormentar. A frase não dita, a frase dita... Todo este exército estava pronto para atacá-lo.

Quando parecia sufocante o suficiente, eis que o mal não parava por aí. Sua voz era o alvo seguinte. Em poucos minutos, em seu quarto, repousava o mais insuportável silêncio. Suas pernas também não mais o obedeciam. A mente é o maior inimigo que alguém pode ter. Ela sabe atacar todos os pontos vitais.

Agora Ele era uma presa fácil. O deus preso dentro de si mesmo. E aos poucos, uma luz muito forte se fez presente em seus pensamentos. Tão forte e limpa que, por um instante, Ele achou que tudo voltaria ao normal. Mas esta tranqüilidade passou rápido demais. Esta mesma luz se transformou em um enorme quadro-negro, sem brilho. Ele começou a pensar em seu tempo, quando era capaz de realizar tudo, mas nada realizou.

Era o tempo da libertação sexual, da revolução tecnológica, da liberdade de expressão. E Ele nada mudou, nada fez e nada falou. Viu a vida passar, sem se estressar com nada. Viu que todos ao seu redor também nada fizeram. Pelo contrário. Eles até achavam que suas convicções eram algum feito, que faziam a vida ter sentido... Mas ninguém era dono de si mesmo. Nem Ele, nem ninguém. Todos estavam perdidos na abundância da nova era.

Agora, Ele era prisioneiro da própria selvageria cerebral. E o preço por viver a todo momento com a sensação de ter perdido algo era muito alto. O que significava ter vivido tantos anos? Para quê? E a reflexão era o torturador... E a todo momento vinham fortes dores de cabeça. E estas dores o questionavam se sua vida eram dias de glórias e de coragem ou uma somatória de covardias e medos. À sua memória, veio uma série de situações, em que questionamentos medíocres tentavam sempre justificar a passividade diante dos fatos. A falta de coragem para enfrentar pequenas situações...

Era como uma esquizofrenia. Ele estava envolvido em um relacionamento intenso, no qual duas ordens de mensagem expressavam autoridade vital sobre ele, uma negando a outra constantemente. Ele era incapaz de comentar qualquer coisa que sua mente lhe impunha. Durante algum tempo, lembranças de sua infância o fizeram chorar. Sua mente o havia colocado diante de seus pais, como em uma cena de filme. Eles seguravam uma criança coberta por um véu vermelho opaco. Seu pai, que Ele não conhecia, vestia roupas brancas e tinha os pés descalços. Sua mãe estava nua. Subitamente, o pai, que segurava uma das mãos da mãe, soltou-a e se virou de costas. Em seguida, começou a falar para ele: "Você se fez por meio de mim, mas não saiu de mim, nem da sua mãe. Eu não pertenço a você e nem você a mim. Não me condene porque eu te libertei. Não o coloquei em nenhuma ditadura familiar. Agradeça-me pela minha ausência. Continue buscando seu caminho e não perca tempo com seus medos. A vida corre em um único sentido. Não tente resgatar nada que não existe." Nesta hora, o silêncio interrompeu as palavras de seu pai.

Diante daquela situação, Ele começou a ter elementos para enxergar o erro de amar e odiar o passado como algo verdadeiro e estável. Mas a coragem de enfrentar aquela realidade o fez sorrir. Depois de uma eterna pausa, era como se sua mente respondesse à situação: "Maldito sejas por roubar a minha paz por tanto tempo." E sua mente o havia libertado momentaneamente. A sensação era de que algo havia sido levemente afrouxado...

A natureza não conhece sistemas, nem classificações. Ela possui o instrumento de renovação da vida. O grande instinto que guia igualmente plantas, animais e o homem. Mas Ele fazia parte de um sistema. Um sistema imposto por outros homens. E a natureza havia escolhido um deles para julgar. E Ele foi o escolhido. Ser aprisionado pela própria vida, pelos próprios pensamentos. Era como uma crise de síndrome do pânico em que a vítima não espera por aquilo, mas quando a crise chega, impõe um controle supremo sobre a mente humana. Não importa o lugar, nem o dia e nem a hora, ela domina o dominador, domina a mente, domina o corpo...

Ele estava totalmente sem ação. Encurralado em um labirinto cinzento e sem força nenhuma para voar dali, pois Ele sabia que a melhor forma de sair de um labirinto seria voando...

Todas as quimeras humanas, os anseios vãos, tudo tinha um peso enorme em sua mente. Por instantes, Ele não suportou a pressão mental e vomitou.

Como relâmpagos, novas imagens apareciam. Algo o fez lembrar de uma faxineira que trabalhava em sua casa. De origem muito simples, ela era a submissão em pessoa! Ela parecia tão alegre que Ele achava que a vida daquela senhora era boa. Mas a imagem que lhe foi mostrada em sua mente era diferente daquele pensamento. Esta senhora apareceu em sua frente com o mesmo semblante feliz, mas algo estava diferente. "Você acha que eu era a pessoa mais feliz do mundo? Eu que ter servia em troca de míseros trocados?" Depois de uma pausa e um sorriso cínico, ela disse: "Nenhum ser que serve outro ser é feliz, seu idiota!". E desapareceu.

Sua vida agora era um mundo próprio, a soma absurda de uma infinidade de mundos subjetivos e de experiências vividas, mas não compreendidas. Ele começou a entender o vazio das relações, a falta de humanidade a que somos condicionados a achar normal. As ações da existência pelas quais somos responsáveis, uma a uma. Aquele mundo era sua criação. Ele não suportou. E quem suportaria ver a própria imagem da existência nua e sem cor? Depois de uma forte arritmia cardiovascular, seu coração parou de bater. Ele deixou de ser deus de si mesmo e virou apenas mais um pensamento na mente de todos os personagens de sua vida...

VANDERSON PIRES

2 comentários:

Ana Paula Saab disse...

Parabéns, companheiro, você é muito talentoso. Há muito eu digo isso! Um beijão e força aí!

Ana Paula Saab disse...

Prosa poética, com pitadas de sarcasmo e suspense na medida. Ao final, a redenção. Você é muito talentoso, companheiro. Já digo isso há muito tempo. Um grande beijo e força aí!