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12 de mai. de 2015

O COLAPSO DA RAZÃO

                                           Existe uma representação mística do mundo que permeia o sentimento comum. Desde a mais tenra idade somos levados a crer que conceitos como liberdade, propriedade e livre-mercado são ontologicamente inquestionáveis. Tais categorias foram canonizadas pelo discurso inexorável da razão. Contestar a ordem do mundo não passa de uma insensatez. Questionar os valores "universais" do liberalismo é comer da mesma maçã que infortunou Adão. A tolerância divina exige um preço: a omissão.

                                             A violência é o devenir das contradições humanas; seus equívocos e obsessões. Os signatários da modernidade são os mesmos que oprimem, embargam e usam-se da tirania  contra aqueles que buscam um caminho próprio, sem procuradores, mas que por isso mesmo ferem a frágil lógica da dominação. O inferno é aqui, longe de ser o local soturno dos cristãos; está em nós mesmos, nessa angustiante passividade concidadã que o dia-a-dia nos denuncia.

                                             Entregar a responsabilidade pela história a um poder exógeno à inteligência é dissociar os desígnios humanos de sua correspondência material. O mundo é atributo do homem: o conhecimento, a ciência, encarnam uma criação universal como aspiração, mas particular como realidade (são as relações de  poder interferindo nos rumos tomados pela evolução social, atrelando esta a interesses hegemônicos). O destino cabe a todos, e ao mesmo tempo a cada um (como já disse Sartre). Ele não está a nossa frente, esperando-nos, dizendo a razão do ser. Quem irá ditá-lo senão as próprias convicções humanas? Existe outro significado à existência a não ser aquilo que exatamente queremos ser, ou melhor, a tudo aquilo a que nos propomos ser? É a condição humana que dá sentido à existência: o que o senso comum habituou a chamar de destino, mas não é mais que uma projeção da práxis. Encarar no destino um compromisso da história é entendê-lo como uma realidade que se projeta no horizonte. Cabe a nós decidi-lo (e modificá-lo).

                                             As experiências do cotidiano, em si, não encerram um estado de consciência. Só um "agir-refletir" poderá nos conduzir às luzes (muito além às dos iluministas). A práxis exige uma ação engajada, sem casuísmos. A omissão é uma escolha frustada de si, uma fuga, uma negação do ser, que não se reconhece como elemento ativo da história, mas apenas compõe-se passivamente perante esta dissolvendo-se nas características comuns de uma época. A condição humana adquire assim, um significado exterior à própria conduta: uma espécie de representação da vontade divina, justificativa plena de incertezas e incógnitas ininteligíveis pela metafísica. Todos os projetos permanecem à mercê de uma interpretação descomprometida com a materialidade  das ações históricas, e o aprendizado social mantém-se encoberto por um conteúdo ideológico deformador, que impossibilita enxergar as estruturas que nos forjaram. Este não reconhecimento é distorcivo à medida que priva a capacidade auto-cognitiva, deixando-nos à margem de compreendermos as experiências de nossos antepassados (agimos impelidos por forças que desconhecemos) e delimitando-nos como iniciativa presente. Apenas a ação concreta pode decidir sobre os desígnios humanos, obliterando tudo aquilo que intuímos (e absorvemos) como valores incontestes. Renunciar ao engajamento é esconder-se em brumas e renegar a legitimidade da ação; é acatar ao poder daqueles que impõem o arbítrio. E dessa forma, não há avanços na solução dos conflitos, pois, dissimulam-se processos preexistentes reproduzindo vícios do passado. A lucidez encontra-se justamente na ruptura com esse sistema de pré-determinações, quando todas as "verdades" se dissipam frente um novo estado de consciência.  Se não há o  rompimento com as estruturas de poder, toda dinâmica social (por mais ostensiva que possa parecer) é apenas incidental e alegórica, destituída de conteúdo verdadeiramente revolucionário que possa alterar o regime de forças.

                                             A liberdade só pode ser definida em situações concretas (Sartre), mas não de forma a reduzi-la em sua expressão, e sim, aproximando-a de indivíduos engajados e seguros da extensão que possam vir a ter os seus projetos. O conceito burguês de liberdade é vago e incompleto: não vislumbra coisa alguma fora das possibilidades engendradas pelo mercado. A liberdade, aqui, consagra-se na proteção aos direitos individuais e do consumidor como premissas fundamentais para a efetivação da cidadania.

                                             A ruptura com todo e qualquer sistema de poder só será plena se houver a contínua autocrítica. Sem um questionamento permanente de seus postulados ela não passará de mera aparência de mudança, presa ao próprio umbigo. Será revolução enquanto perdurarem as circunstâncias de superação, entretanto, deixará de sê-la se seus elementos acomodarem-se na sua fisiologia. A partir de então, estanca-se o processo revolucionário e o que foi tenso passa a figurar em tom absoluto e incontestável.

                                             O socialismo, como aspiração universal de justiça e igualdade, não morreu. O que sucumbiu foi a sua forma estatal e burocrática, que ao invés de consolidá-lo como alternativa ao capitalismo, acabou rivalizando com este, perpetuando velhas formas de exploração. Cuspir em Marx é um contra-senso desmedido, apenas objeto dos anseios da crítica ortodoxa e presa às cartilhas liberais-positivistas. Suas idéias não foram rechaçadas pelo atual modelo do desenvolvimento capitalista (como tentam justificar os defensores do consenso pela globalização). É a tradição marxista que precisa superar seus equívocos e vilipendiar o dogmatismo que imperou (e emperrou!) em boa parte de suas fileiras.

                                             O século XX promoveu dissensões profundas na sociedade moderna. Suas contradições, de certa forma, enriqueceram a experiência humana. Em contrapartida, deixou aos seus filhos a árdua tarefa do limiar de um mundo mais justo e solidário.



                                             CAETANO PROCÓPIO NEVES - 18/1/99

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