Existe uma representação mística do mundo que permeia o
sentimento comum. Desde a mais tenra idade somos levados a crer que conceitos
como liberdade, propriedade e livre-mercado são ontologicamente
inquestionáveis. Tais categorias foram canonizadas pelo discurso inexorável da
razão. Contestar a ordem do mundo não passa de uma insensatez. Questionar os
valores "universais" do liberalismo é comer da mesma maçã que
infortunou Adão. A tolerância divina exige um preço: a omissão.
A
violência é o devenir das contradições humanas; seus equívocos e obsessões. Os
signatários da modernidade são os mesmos que oprimem, embargam e usam-se da
tirania contra aqueles que buscam um
caminho próprio, sem procuradores, mas que por isso mesmo ferem a frágil lógica
da dominação. O inferno é aqui, longe de ser o local soturno dos cristãos; está
em nós mesmos, nessa angustiante passividade concidadã que o dia-a-dia nos
denuncia.
Entregar
a responsabilidade pela história a um poder exógeno à inteligência é dissociar
os desígnios humanos de sua correspondência material. O mundo é atributo do
homem: o conhecimento, a ciência, encarnam uma criação universal como
aspiração, mas particular como realidade (são as relações de poder interferindo nos rumos tomados pela
evolução social, atrelando esta a interesses hegemônicos). O destino cabe a
todos, e ao mesmo tempo a cada um (como já disse Sartre). Ele não está a nossa
frente, esperando-nos, dizendo a razão do ser. Quem irá ditá-lo senão as
próprias convicções humanas? Existe outro significado à existência a não ser
aquilo que exatamente queremos ser, ou melhor, a tudo aquilo a que nos propomos
ser? É a condição humana que dá sentido à existência: o que o senso comum
habituou a chamar de destino, mas não é mais que uma projeção da práxis.
Encarar no destino um compromisso da história é entendê-lo como uma realidade
que se projeta no horizonte. Cabe a nós decidi-lo (e modificá-lo).
As
experiências do cotidiano, em si, não encerram um estado de consciência. Só um
"agir-refletir" poderá nos conduzir às luzes (muito além às dos
iluministas). A práxis exige uma ação engajada, sem casuísmos. A omissão é uma
escolha frustada de si, uma fuga, uma negação do ser, que não se reconhece como
elemento ativo da história, mas apenas compõe-se passivamente perante esta
dissolvendo-se nas características comuns de uma época. A condição humana
adquire assim, um significado exterior à própria conduta: uma espécie de
representação da vontade divina, justificativa plena de incertezas e incógnitas
ininteligíveis pela metafísica. Todos os projetos permanecem à mercê de uma
interpretação descomprometida com a materialidade das ações históricas, e o aprendizado social
mantém-se encoberto por um conteúdo ideológico deformador, que impossibilita
enxergar as estruturas que nos forjaram. Este não reconhecimento é distorcivo à
medida que priva a capacidade auto-cognitiva, deixando-nos à margem de
compreendermos as experiências de nossos antepassados (agimos impelidos por
forças que desconhecemos) e delimitando-nos como iniciativa presente. Apenas a
ação concreta pode decidir sobre os desígnios humanos, obliterando tudo aquilo
que intuímos (e absorvemos) como valores incontestes. Renunciar ao engajamento
é esconder-se em brumas e renegar a legitimidade da ação; é acatar ao poder
daqueles que impõem o arbítrio. E dessa forma, não há avanços na solução dos
conflitos, pois, dissimulam-se processos preexistentes reproduzindo vícios do
passado. A lucidez encontra-se justamente na ruptura com esse sistema de
pré-determinações, quando todas as "verdades" se dissipam frente um
novo estado de consciência. Se não há
o rompimento com as estruturas de poder,
toda dinâmica social (por mais ostensiva que possa parecer) é apenas incidental
e alegórica, destituída de conteúdo verdadeiramente revolucionário que possa
alterar o regime de forças.
A
liberdade só pode ser definida em situações concretas (Sartre), mas não de
forma a reduzi-la em sua expressão, e sim, aproximando-a de indivíduos
engajados e seguros da extensão que possam vir a ter os seus projetos. O
conceito burguês de liberdade é vago e incompleto: não vislumbra coisa alguma
fora das possibilidades engendradas pelo mercado. A liberdade, aqui,
consagra-se na proteção aos direitos individuais e do consumidor como premissas
fundamentais para a efetivação da cidadania.
A
ruptura com todo e qualquer sistema de poder só será plena se houver a contínua
autocrítica. Sem um questionamento permanente de seus postulados ela não
passará de mera aparência de mudança, presa ao próprio umbigo. Será revolução
enquanto perdurarem as circunstâncias de superação, entretanto, deixará de
sê-la se seus elementos acomodarem-se na sua fisiologia. A partir de então,
estanca-se o processo revolucionário e o que foi tenso passa a figurar em tom
absoluto e incontestável.
O
socialismo, como aspiração universal de justiça e igualdade, não morreu. O que
sucumbiu foi a sua forma estatal e burocrática, que ao invés de consolidá-lo
como alternativa ao capitalismo, acabou rivalizando com este, perpetuando
velhas formas de exploração. Cuspir em Marx é um contra-senso desmedido,
apenas objeto dos anseios da crítica ortodoxa e presa às cartilhas
liberais-positivistas. Suas idéias não foram rechaçadas pelo atual modelo do
desenvolvimento capitalista (como tentam justificar os defensores do consenso
pela globalização). É a tradição marxista que precisa superar seus equívocos e
vilipendiar o dogmatismo que imperou (e emperrou!) em boa parte de suas
fileiras.
O
século XX promoveu dissensões profundas na sociedade moderna. Suas
contradições, de certa forma, enriqueceram a experiência humana. Em
contrapartida, deixou aos seus filhos a árdua tarefa do limiar de um mundo mais
justo e solidário.
CAETANO
PROCÓPIO NEVES - 18/1/99
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